quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Por uma razão instintiva

Nessas andanças com Luca por aí, tenho visto e ouvido muitas histórias sobre gravidez, parto e amamentação, e no vasto mundo da internet, o que não faltam também são artigos provocando reflexões importantes sobre esses momentos, comum a todos os mamíferos. E tenho pensado que nós, humanos, seres mamíferos dotados de razão, talvez por essa mesma razão sejamos os animais com maior dificuldade para levar adiante esses processos, que são tão instintivos. Ao longo de milênios, as mulheres levaram adiante a humanidade gerando, gestando, parindo e alimentando sua cria, e eis que chegamos à civilização contemporânea e bum!, parece que tudo mudou.

E eu, vendo tudo isso, sabe, preciso desabafar.

Passou-se a esperar de nós um comportamento pré-determinado e racional, além de recatado, suave e submisso, deixando a tarefa de parir aos médicos – homens, pois demorou até que algumas de nós se tornassem médicas – depois que as parteiras também foram excluídas desse processo tão natural, tão fisiológico. A partir daí, começaram um sem número de intervenções, de agressões, de invasões ao nosso corpo – agulhas, bisturis, cortes, amarras... e traumas, muitos traumas, fazendo boa parte de nós pensar no parto como uma experiência de sofrimento, não de superação. Fazendo-nos pensar na amamentação como uma prisão, não como um ato único de amor, do qual somente nós mulheres, somos capazes.

Junte-se a isso toda a propaganda dos meios de comunicação sobre o momento do parto. Tal qual o sexo, o parto e a amamentação também são profundamente idealizados, coisa  de donzelas, e mais recentemente, de mulheres autônomas e com carreiras bem sucedidas, que se viram nos 30 para conciliar tantas jornadas. Deixa-se totalmente camuflado o lado mais irracional da coisa, o lado bicho-fêmea, que todas nós temos dentro de nós, e que precisamos explorar e expressar se quisermos viver essa experiência por inteiro. O tal do instinto materno, sabe?

Mas esse tal de instinto, atualmente, anda muito em baixa, banalizado e distorcido nas capas de revistas e nos temas de novelas, ao procurar impor a nós mulheres um estereótipo de mãe que simplesmente não é plausível. O parto que acontece LOGO DEPOIS que rompe a bolsa, a chegada de um neném angelical, silencioso e limpinho para os braços da mãe, que amamenta com um sorriso nos lábios SEMPRE. E, quando nos rendemos a esse formato, simplesmente deixamos de acreditar na capacidade que nosso corpo possui de gerar, gestar, parir e alimentar nossa cria.

E aí, quando a bolsa rompe e o neném demora a nascer, logo achamos que não temos dilatação; quando ele nasce, e não mama – após, registre-se, ter sido submetido a uma separação brusca de nossos corpos, e a toda sorte de intervenções -, damos-lhe fórmulas, pois nosso leite é fraco, ou porque o neném não gosta de mamar no peito.

Oras, mas então como é que a humanidade chegou até aqui quando não existiam bisturis nem mamadeiras?

Bom, claro que existem histórias e histórias, dificuldades existem, e a ciência está aí para nos ajudar a superar essas dificuldades e, muitas vezes, salvar vidas. Mas. afora os casos em que há riscos concretos para mães e bebês, ajudar é totalmente diferente de nos alijar de um processo que é nosso, de fato e de direito. Toda mulher é capaz de parir. Toda mulher tem leite. As coisas às vezes podem não fluir com perfeição, mas com incentivo e apoio emocional dos que nos cercam e nos assistem, tudo pode ser superado. Enquanto algumas de nós continuar duvidando disso, continuaremos sendo controladas por um sistema que busca apenas o lucro, seja com as desnecesáreas, seja com as fórmulas que imitam o leite.

Não, não é fácil parir. Não, não é fácil amamentar. Sim, as contrações doem, são demoradas, o processo de transição para expulsar o bebê é uma loucura e nos faz crer que não vamos sobreviver àquele momento. Sim, os bebês sugam com uma força inacreditável para seres tão pequenos e supostamente indefesos; os mamilos ficam sensíveis, podem rachar e apresentar fungos em função do contato com a boca do bebê e o ambiente úmido criado pelo sutiã e pelas roupas.

Mas, sim, é preciso aguardar o sinal do bebê que ele está pronto para vir, e essa espera pode gerar muita angústia e nos fazer pensar que esse momento jamais virá. E, sim, é preciso ter paciência e esperar o tempo do mamar do bebê, que pode ser de 8 minutos de relógio, como disse a pediatra de Luca sobre outro paciente dela, como de 1 hora, como já vi meu filho ficar no meu peito – e sem dormir – pra recomeçar meia hora depois.

Seguir nossos instintos, porém, por vezes, desconcerta aqueles que estão por perto, acostumados a uma  sociedade mecanizada, onde o bom é conseguir prever e controlar processos. E acabam nos constrangendo a fazer o oposto do que nosso instinto fêmea nos diria pra fazer, se estivéssemos atentas a ele. Uma mulher, nua, suada, descabelada, gritando para expulsar seu bebê de dentro dela não é uma imagem fácil de lidar. Então é melhor, num momento em que estamos extremamente vulneráveis e fragilizadas, fazer o que esperam de nós, e aceitar a assepsia do centro cirúrgico do hospital, dos bisturis esterelizados, da suposta ‘limpeza’ do ambiente, do conhecimento do médico, que sabe o que é melhor para nós e nossos filhos.

Na sociedade da velocidade, não se  conta mais a gravidez em meses, mas em semanas; não se tem mais um mês provável para o parto, mas sim uma data; passou dela, é hora de internar, pois o bebê corre risco dentro desse corpo feminino, incapaz, defeituoso e perigoso. E aí entramos naquela loucura de “bebê preguiçoso”, que “passou da hora”, como se eles viessem com o prazo de validade estampado na testa quando nascem.

Na sociedade tecnológica, não se fazem mais apalpações na barriga da mãe para sentir a posição do bebê e a quantidade de líquido, se fazem ultrassonografias, com aparelhos manuseados por humanos e, por isso mesmo, bastante sujeitos a erros. E aí se cria na cabeça das mulheres o pesadelo do bebê gigante, que não vai passar, como se a natureza fosse cruel o suficiente para nos fazer gerar uma vida que não seremos capazes de dar à luz.

E, quando finalmente esse bebê nasce, seu instinto de sobrevivência é voraz, e não doce e sorridente como querem nos fazer crer as imagens das propagandas de fraldas e de shampoo infantil... Esse ser, tão pequeno, com a boca totalmente aberta, mãos cerradas, emitindo grunhidos que poderiam ser os de um filhote de hipopótamo, indo em busca do seio, de uma parte do nosso corpo tão cara e tão sensível, pode se tornar algo assustador se não estivermos preparadas para encarar o processo tal como ele é: fisiológico, natural, humano e animal ao mesmo tempo. Porque, afinal, como dizia a propaganda, ‘nós somos mamíferos’.

E a dor, que julgávamos ter desaparecido com o fim das contrações recomeça, e se nós travamos ao dar o peito, o leite some, empedra. E sempre tem alguém para apontar que nosso corpo é, mais uma vez, defeituoso, e o bebê não está ganhando peso. Ah, quanta ironia da natureza... nos faz gerar uma vida e não nos dá capacidade para mantê-la.

E assim, nós, que passamos tanto tempo exigindo ser tratadas em pé de igualdade com os homens e falando de gênero como algo socialmente construído, acabamos iguais num aspecto: incapazes de parir e de amamentar. Mas basta lembrarmos que diferente do gênero, o sexo, masculino ou feminino, é fisiologicamente constituído. Sim, temos diferenças centrais em relação aos homens. Do corpo deles não verte leite, do corpo deles não é possível sair um bebê. E não, não é possível que a natureza tenha mudado a ordem das coisas e entrado o século 21 nos pregando tantas peças...

Fico pensando em como é difícil processar tantas idéias num momento tão delicado quanto a gravidez e o puerpério e no quanto seria ingênuo acreditar que, sendo humana, vivendo na sociedade em que vivemos, seja possível seguir apenas os instintos para viver esse momento. Muito antes pelo contrário, o bom seria que soubéssemos todas usar uma espécie de “razão instintiva”, que nos permita aproveitar o máximo de conhecimentos da sociedade da informação para fazer nossas escolhas, respeitando, porém, a nossa fisiologia, e exigindo o controle absoluto sobre os processos que ocorrem em nosso próprio corpo, e o respeito ao tempo da gestação e do nascimento de cada um.

Bem, com certeza, esse tempo não coincide com feriados, festas e finais de semana dos médicos. Nem com o faturamento projetado para o próximo período dos hospitais mundo afora. Mas é preciso fazer uma escolha. E, com certeza, homens e mulheres das próximas gerações agradeceriam tamanha deferência com o tempo deles e delas... pois a vida, sim, começa no nascimento.

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