sábado, 1 de abril de 2017

Outras palavras



Já tem tempo, muito tempo, que não venho a esse mural eletrônico contar as aventuras do meu Boluca. Não significa que histórias não estejam sendo escritas, contadas e vividas. Quem me acompanha no facebook acompanha muitos diálogos com ele ao longo desses anos, pequenas passagens de uma história que está se forjando nesse mundão. Um dia ainda escrevo um livro sobre isso, mas isso é assunto para outro momento.

Hoje o dia é de contar que o guri está começando a ler. Bem, como tudo na vida de um ser humano que está começando a trajetória nesse plano, estamos num processo, que iniciou um tanto depois dele completar 4 anos. Depois de dominar a fala, que foi o assunto do último post, quase 3 anos atrás, inclusive, o passo seguinte foi aprender a falar o alfabeto, a ordem das letras, as letras do próprio nome. Tudo isso incentivado na escola, diga-se de passagem um pouco a meu contragosto. Digo isso por que penso que vivemos um tempo em que cobramos demais das crianças, queremos que elas estejam à frente, que estejam preparadas, que se desenvolvam.

Quando na verdade elas sempre se desenvolvem. Todos os dias, nas atividades mais triviais e nas mais complexas. Os estímulos necessários são, de fato, muito simples de serem encontrados. Como quando, por exemplo, eu percebi o interesse dele pelas letras, comprei um alfabeto de borracha, imantado, e ele ficava feliz da vida brincando com as letras enquanto eu cozinhava. Sem essa de pedir pra escrever isso ou aquilo, seja livre entendendo o desenho das letras, "desenhando" o próprio nome, ou o meu nome, no caso, "Mamãe".

Esse olhar adulto-mercado-de-trabalho-competitivo, porém, nos impele a considerar que elas devem entrar no inglês com 2 anos, ter tarefas de casa aos 4 e ler antes de começar o período escolar destinado à alfabetização. Parece delirante, e é um pouco mesmo. A escola que o Luca está ainda que pega leve nesse sentido quando consideramos a média, sob o argumento de que quer preparar as crianças para o que elas vão enfrentar no ensino fundamental, sobretudo se a escolha da família for por um ensino mais tradicional.

E eles fazem isso de um jeito muito interessante, que é introduzindo o uso do uniforme sem abolir o da fantasia e do brinquedo, incentivando a autonomia e as responsabilidades com o próprio material, e mandando pra casa tarefinhas. E que são bem inhas mesmo, porque só pretendem estimular a atenção da criança para as instruções das professoras, e o hábito, em casa, de um tempo para se concentrar numa atividade que será cobrada na escola. Vão construindo, de um jeito bem bacana até, o ritmo, a rotina, para um percurso que será muito, muito longo na vida deles.

Pois bem. Nesse contexto as letras são apresentadas, e eu só não me incomodo mais porque tomei a decisão de absolutamente não incentivar ele a nada. E deixar que o interesse partisse inteiramente dele. Comemorando suas conquistas, claro, mas sem nem corrigir quando ele erra um letra, inverte ordem, enfim, deixando o barco correr completamente solto e livre.

Mas o piá é meu filho. Filho dessa mãe que ama os livros, as palavras, o conhecimento. É, ele não curte muito desenhar também. Então por mais que eu não incentive, está dentro de mim, exala em mim, e se transmite para ele. E aos poucos ele começou a ser capaz de ler sequências de letras, formando palavras, mesmo sem entender absolutamente o significado.

Me pedia para parar no meio da rua para ler.

Para não sair com o carro porque ele estava lendo a placa.

E num dia leu uma placa que vendia remédio para impotência sexual. Sim, ele leu “impotência se...al”. É, com 4 anos eles felizmente não conhecem todos os fonemas. Mas também não entendem o que leem, no máximo reconhecem o próprio nome. Assim, as professoras comemoraram num dia que ele leu “sabonete antisséptico”, e vieram me contar super felizes e orgulhosas. Mas ao ser perguntado por mim sobre o que significava, ele riu e deu de ombros. O que importa o que significa, não é mesmo? O barato é louco, mas o processo é lento. Como a vida deve ser.

Só que o desenvolvimento é uma marcha sem ré, então claro que o próximo passo seria ele entender o que lia. Mas antes de falar sobre isso, quero dizer que até o Luca começar essa fase, eu não havia me dado conta de como é o processo de aprendizagem da leitura. Claro, porque quando foi comigo eu não me lembro, e agora o Luca é meu primeiro e único filho. E é o que eu sempre digo, ter filhos é descobrir o mundo pela segunda vez. Na primeira vez não nos lembramos, não temos esse registro, e na segunda, ficamos maravilhados com esses processos. Bom, pelo menos eu fico.

Então eu achava muito curioso o fato dele conseguir ler as palavras, formar as sílabas, mas não entender o que estava lendo. Comecei a notar isso quando ele trazia as tais tarefas para casa, lia o que era pedido na folha de papel, virava pra mim e perguntava:

- O que é pra fazer, mãe?

Algumas vezes ele já vinha com a orientação na cabeça, porque a professora tinha explicado em sala, e me alegrava ver que ele conseguia prestar atenção e fixar o comando até a hora de estar em casa, com a tarefa para ser feita. Mamãe intelectual-cdf-estudiosa-cientista-pesquisadora-orgulhosa.

Mas, esses dias, não mais que de repente, ele estava jogando um jogo de tabuleiro com um amigo. O objetivo do jogo era montar uma pizza, e no tabuleiro se jogava um dado, andavam casas que davam direito a tirar uma carta, que poderia ser de sorte ou azar. Para saber, era necessário ler o conteúdo da carta. Eis que o amigo me chama:

- Tia, o que é voeê?
- Hein?
- É, tá escrito.
- Deixa eu ver.

Chego no quarto, o Luca me mostra a carta:

- "Sorte. Voeê”...
- Aqui não é “e”, filho.
- É sim.
- É não, olha de novo.

Aqui, um parênteses. Apesar de ter como conduta nunca corrigir, nunca ficar apontando o erro, nem na fala, nem na "leitura", chega um momento que a criança demonstra sinais de fragilidade quando percebe que não consegue acertar. E aí, no nosso papel de adulto, de observação silenciosa e paciente, algumas pontuações são necessárias, para que ele reveja o assunto, e tente acertar de novo. Treino é mais importante que acerto. Bem, então o guri olha de novo, e...

- Ah, vosssséééé... Você! “Você foi ao supermercado. Escolha um ingrediente.” Ah, eu ganhei um ingrediente!

E assim ele entendeu o que lia, e jogou o jogo feliz para sempre, sem precisar de ajuda para progredir no tabuleiro. E fez uma mãe flutuar de alegria e felicidade por mais essa conquista.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Uma mente infantil

O nascimento de uma criança nos coloca frente a frente com nossos instintos mais biológicos, e também nos confronta com um ser completamente dependente de nós, que tem poucos recursos para comunicar o que necessita para sobreviver nesse mundo. Muito se fala, então, sobre o choro de uma criança e os seus significados. Muitas teorias surgem tentando justificar o "deixar chorar" e o "não deixar chorar". Há quem defenda que deixar chorar ensina (a dormir, a esperar etc.). Eu sou daquelas que acredita que deixar chorar ensina, sim: ensina que não podemos confiar nas únicas pessoas que temos nos mundo, aqueles que nos fizeram, que nos emprestaram uma parte de si para que pudéssemos existir. Bem, então, de minha parte, realmente nunca deixei o Luca chorar, assim, por chorar. Sim, o choro dele já me deixou desesperada, angustiada, me sentindo péssima mãe por não conseguir conter ou compreender o que ele significava... Mas sempre entendi o choro como uma forma de comunicação que o bebê estabelece conosco.

E por isso mesmo, enquanto ele só tinha o choro para se comunicar e dependia do meu colo para se locomover, e do meu leite para sobreviver, sempre vi o Luca como um bichinho, como qualquer outro mamífero. Passei a compreender que o que nos diferenciava dos outros animais era a capacidade de articular a fala, a linguagem e, com isso, dar nome e significado às coisas do mundo. E, tal e qual tantas outras coisas na maternidade, o aprendizado da fala é um evento cujo o desenrolar, ao longo dos meses, é simplesmente fabuloso de observar e desvendar.

Quando ainda estava grávida, lia muitas coisas sobre como se comunicar com o bebê, e a importância de ir nomeando o mundo para ele. Ficava olhando com um certo estranhamento para a ideia de conversar com um bebê que só sabia mamar, dormir e, eventualmente, chorar para pedir alguma dessas duas coisas. Mas não demorei muito a entender que os sons guturais que ele fazia, ainda recém-nascido, eram uma outra forma de comunicação. Que com poucos meses de vida, já era possível diferenciar esses sons como expressão de prazer ou desprazer. E que isso fazia parte do processo de se tornar mais humano e menos animal.

Tenho doces lembranças do período em que estive de licença maternidade e ia semanalmente ao mercado comprar frutas. Saía a pé, com ele no sling, e ia papeando com ele como quem conversa com uma criança que já anda e fala com mais desenvoltura. Mostrava as árvores, falava das cores dos céus e dos passarinhos, mostrava as crianças brincando nos parquinhos da vizinhança. O Luca pouco notava o que eu mostrava pra ele, ou melhor, pouco expressava notar alguma coisa. Olhando em retrospectiva, tenho clareza que aqueles passeios todos foram sendo gravados na sua memória e foram uma influência benéfica para o que veio depois...

Perto de fazer um ano, ele já tentava articular sílabas, apontava objetos e, de alguma forma, tentar expressar, segundo a nossa linguagem, os seus desejos. O choro, e os sons guturais, claro, ainda seguiam sendo o auge da sua capacidade de expressão. Por volta dos 10 meses, eu e ele tínhamos uma brincadeira: ao chegar em casa da creche, eu colocava ele no meu colo, depois de mamar, e ele começava a apontar os diversos objetos que via na sala, querendo saber o nome. Quadro, controle remoto, TV, sofá, cadeira. E a brincadeira era tão séria, que ele tinha uma ordem, e quando ele saía da ordem, caía na gargalhada. Ele sabia exatamente o que estava querendo saber, e tinha o protagonismo naquele momento sofisticado de comunicação.

Não demorou a começar a falar mamãe e papai, mas eu achava curioso como ele não nos chamava; ele se referia a nós em terceira pessoa, como em tudo. Sim, não havia diálogo, não era uma conversa como conhecemos entre adultos com  fala desenvolvida. Era um amontoado de sílabas e palavras que ele estava apreendendo o significado. Escolhia o que queria aprender a partir daquilo que mais despertava seu interesse. Uma das primeiras palavras que ele tentou articular foi: liqüidificador. Não estou querendo ser uma mãe esnobe ao afirmar que meu filho pediu para fazer suco de manga no liqüidificador com um ano de idade. Luca simplesmente se divertia com o barulho do liqüidificador ligado, e quando ele ria, eu falava o nome. E ele começou a se referir ao dito como "li". "Li", e apontava para o tal. A gente ligava o liqüidificador, ele caía na risada e "li".

Aos poucos, as sílabas foram saindo da boquinha dele: "liki", "licador", "liquiiiiador", e em alguns meses ele já conseguia articular a palavra completa. O desabrochar da fala é algo fascinante nas crianças, e eu adorava ouvi-lo repetir esse processo com muitas outras palavras. Até que em algum momento ele entendeu que existiam... os pronomes. Meu copo, seu copo. Meu prato, seu prato. Luca colocou praticamente a família inteira e os amigos próximos malucos tentando entender a lógica com que ele utilizava os pronomes. Como a criança aprende basicamente por repetição, ele simplesmente reproduzia o que eu falava pra ele: "filho, vou pegar seu copo, tá?"; "filho, vou fazer seu prato de comida, viu?", e por aí vai. E quando queria algo, dizia: seu copo, seu prato, seu garfo, seu brinquedo. E, claro, o interlocutor desavisado olhava e dizia: "não, é seu". Sim, ele sabia que era "seu". "Seu", naquele estágio da linguagem dele, era "meu"! E eu simplesmente vibrava quando sacava que o raciocínio inverso também era válido: ao se referir a algo meu (meu, de sua mãe), ele dizia: "meu chinelo"... É, amiguinhos, desvendar a mente infantil não é tarefa para os fracos. Comunicar-se com ela, então...

Porque um belo dia ele entendeu que se dissesse "mamãe" com uma determinada entonação, seria atendido. E aí passava horas a fio me chamando sem querer me dizer nada, pelo simples prazer de... me atormentar? Não, de observar minha reação diante do chamado dele. E nisso ele já tinha passado de um ano e meio, seu vocabulário havia crescido muito e ele era capaz de escolher entre duas frutas ou dois brinquedos, de dizer sim ou não para o banho ou hora de dormir. E, então, ele descobriu que existiam... verbos! Sim, e verbos que podiam ser conjugados. Sim, meu menino, prestes a fazer dois anos, já sabia estabelecer diálogos curtos, expressar o que queria por meio de frases imperativas, como:

- Deixe que eu pegue.
- Deixe que eu faze.
- Deixe que eu abre.
- Eu sabo.
- Eu quelio (brincar mais, comer mais etc.)...
- Deixe que eu pose/ponhe.

Nessa altura do campeonato o guri já se comunicava praticamente como um adulto, pelo menos comigo e com o pai, pessoas com quem ele tinha mais intimidade. Não havia dificuldade em compreender o que ele pedia, mesmo sem ter a capacidade de articular todas as palavras, ou de pronunciar todos os fonemas. E, como ainda operava muito por meio da repetição, de vez em quando saía uns "puta que paliu", "caiaio", "fola", "meda"... Tá pensando que é fácil? Sabe de nada, inocente!

E ele, que sempre anda muito de carro comigo e me ouvia, ao parar no posto para abastecer, pedindo "100 reais de álcool", um dia nos deixou por algum tempo tentando decifrar o que era "sem eais di alco", assim, no meio de uma refeição. Algo que ele lembrou e falou e morreu de rir quando eu repeti, sinalizando que havia compreendido o que ele queria dizer. De longe, essa é uma das partes mais deliciosas desse processo: a alegria do guri quando ele se sente compreendido naquilo que expressa. E num momento que a fala, e a capacidade de dialogar ainda estão se articulando, trata-se de um desafio para a criança, articular seu pensamento, expressa-lo, ser ouvida e, mais que isso, entendida. Como não ficar alegre quando atinge esse resultado?

Há pouco tempo, próximo de completar 3 anos, a criança pareceu ter engolido a pílula do doutor caramujo, que fez a boneca Emília começar a falar para nunca mais parar, deixando a mim, tal como Narizinho, atordoada, principalmente quando começamos a primeira dose por volta das 6h da manhã (de um domingo).

E, deliciosamente, Luca começou a compartilhar comigo a visão dele do mundo que está começando a descobrir e atribuir sentidos, completando ciclo da fala. E que se articulou muito bem com a paixão dele pela música, pelo aprendizado de cantar, pela identificação das canções ao ouvi-las, ainda que em lugares diferentes dos que está habituado. A criança ouve de David Bowie a Doces Bárbaros, e diz, de Starman: "eu só eu e o David Bowie sabe cantar, você não sabe, mãe!".

Claro que ainda há um longo processo, ainda são muitas as vezes que ele não consegue articular as palavras, e chora, para depois falar. Que ele responde perguntas presentes com referências do passado. Que ele se confunde e não consegue expressar se está sentindo fome, frio, dor ou sono. Mas ele conta histórias mirabolantes, desde pegar uma escada bem grande para subir até a Lua, ou me perguntar se ela está grudada no céu. Querer saber se macacos comem banana com casca, ou se jacarés comem gente. Se a Torre de TV é a mesma Torre do "livro de Paris", que temos aqui em casa. Se o gato é uma pessoa, que o leão é um cachorrinho.

Aos poucos, as histórias fantasiosas dele revelam suas emoções, como quando ele diz que jogou todos os amigos no lixo, porque estavam "deselegantes", e depois jogou a tampa do lixo fora. Quando diz que cortou o braço do amigo que o mordeu na creche, ou que não queria emprestar um brinquedo. E revelam também suas dúvidas sobre se eu estou compreendendo o que ele me diz, quando ele pergunta que eu "percebi" que ele falou manga, mas era abacate (e, na verdade, "percebi" é "entendi"). E eu me orgulho de mim mesma como mãe quando consigo compreender o que ele diz, mesmo que ele use o verbo errado, porque nossa comunicação começou no útero, com os soluços que ele tinha e os chutes que me dava. Começou com a dança das contrações anunciando sua saída, com a língua pra fora indicando que queria mamar, com sua primeira gargalhada, com ainda um mês de vida. Com nossas conversas intermináveis indo e voltando do mercado, e ele com aqueles olhos de jabuticaba olhando o mundo com um estranhamento de revirar as mais profundas emoções, me convidando a descobrir o mundo pela segunda vez.

E agora, no estágio atual, está aprendendo a falar o "r", em prrrrrato, brrrranco, agorrrrrra. E faz questão de dizer isso para todos que encontra pela rua. E segue me questionando diaria e repetidamente por que venta, por que chove, por que a bandeira fica no mastro e por que ela balança, por que o caminhão tem caçamba e por que o poste tem fio ou tem lâmpada. Por que o sinal vermelho é pra parar e o verde para andar, por que ele não pode comer macarrão no café da manhã e bolo de chocolate no almoço, por que o metrô fica embaixo da rua, por que o carro tem volante e marcha. Por que hoje é terça e não sexta, por que ele faz aniversário. O que é verão, o que é inverno, o que vem antes, a primavera ou o "antono".

A mente de uma criança é divertida, por vezes ela chega a ser embriagante e lisérgica, mas sobretudo, ela é desafiadora. A mente infantil, no seu estranhamento do mundo que está sendo descoberto, nos faz questionar a lógica e a razão de ser de tudo aquilo que nos cerca e que talvez, justamente porque crescemos e deixamos de ser crianças, também desaprendemos a questionar. Vai, filho, vai questionar esse mundo em que você vive, pois se depender de mim, sua mãe, você jamais vai aprender a aceitar um "porque sim/porque não" como resposta!

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Complicado e ao mesmo tempo diferente

O título do post é uma alusão à música da Legião Urbana, “Meninos e Meninas”, porque o dia de hoje começou com um diálogo, daqueles bem light, logo no café da manhã, protagonizado por um guri que está vivendo na plenitude os seus 3 anos de vida.

- Mamãe, eu não gosto dos meninos que vieram aqui em casa.

Eu estava saindo do banho, achei que tinha escutado isso, mas na dúvida, pergunto:

- Não gosta dos meninos porquê, filho?
- Não... eu não gosto das meninas.
...
- Por que, filho?
Luca e Nina na função
- Porque não. Eu só gosto de você, de mim e do meu pai.

Penso como é bom que o guri esteja com a autoestima elevada e seguimos no diálogo, com ele complementando, e se referindo às pessoas que estiveram na festa de aniversário do post passado:

- E eu gosto do Heitor e do Andrei. E só.
- E da Nina, filho?
- Da Nina também.

Fico aliviada que ele gosta de uma menina, ainda mais porque a Nina e ele são super parceiros, é uma delícia vê-los brincando juntos.

- E da Olívia?
- Da Olívia também.

Sigo perguntando pessoa por pessoa, e ele vai dizendo que gosta de todas, meninos e meninas, homens e mulheres. E eu digo:

- Então você gosta das meninas, filho. A Nina e a Olívia são meninas.
- Não, elas são meninos.

Fuém, fuém, fuém...

- E a Dulce e a Camila?
- Delas eu também gosto. Eu não gosto das meninas pequenas. Só das  grandes.

Passa mais um tempo nessa conversa de quem ele gosta e quem ele não gosta, e ele solta:

- Eu não gosto quando as meninas vêm brincar comigo.

Saquei que eram as meninas da creche, e de fato eu já o vi disputando brinquedo com uma, ignorando outra e dando uns tapas numa terceira (nesse dia eu quase caí pra trás, mas segurei a onda e apenas repreendi dizendo que não devia bater em ninguém). Ele tem se vinculado mais aos guris, outro dia tava brincando de “casinha”, um era o pai dele, o outro era o filho, todos uns fofos, mas sempre daquele jeito dele que a galera já conhece...

- Tudo bem, então, meu amor. Um dia você vai gostar.

Claro que quem me conhece pode imaginar que eu já estava me preparando para começar todo um discurso sobre igualdade de gênero, e do machismo que mata mulheres todos os dias (hahahaaha, as feminista pira!), e eu até ensaiei, não vou mentir. Mas me contive e achei daqui uns 10 anos essa conversa poderá surtir mais efeito.


Para um guri de 3 anos que está começando a diferenciar o feminino do masculino, parece que no final das contas ele já sacou que o sexo não é determinante para ele gostar de alguém, já que pode facilmente considerar suas amiguinhas de 3 e 4 anos como meninos, para se permitir continuar gostando delas. O que me leva a pensar que a veia argumentativa e criativa do mininu teve a quem puxar...

segunda-feira, 2 de junho de 2014

#Luca3anos

Tentando retomar as atividades nesse blog empoeirado e esquecido, nada mais oportuno que falar sobre as comemorações dos 3 anos do guri. Desde que ele nasceu, eu sempre tive pra mim que 3 anos seria a idade ideal para efetivamente fazer uma festa de aniversário de verdade. Com 1 ano a celebração é muito mais para a mãe/pai do que para a criança, no melhor estilo "eu sobrevivi". Com 2, já começa uma curtição, o bebê é engraçadinho e participa de algumas coisas, mas ainda não se dá conta do que é aniversário - pelo menos foi o que aconteceu por aqui.

Mas eu tive certeza que Luca iria curtir o aniversário dele quando, um dia, ao voltarmos da creche, ele me perguntou se era meu aniversário - não era - mas ele quis cantar "parabéns pra mamãe" mesmo assim. Depois, quando o mês de maio começou, ele ficou dias e dias perguntando se já era o aniversário dele. Mas o sinal definitivo foi quando ele aprendeu quantos anos iria fazer, e ficava dobrando os dedinhos até acertar. Não tive dúvidas que ele curtiria uma festa. E lá fui eu me aventurar a organizar tudo, com pouco tempo e dinheiro, e no estilo do guri. Isso significava nada de festa temática - porque ele não tem um personagem preferido, não se liga nessas coisas - e muito menos festa em buffet, que isso não faz nosso estilo meeeesmo.

Guri convida para a festa no lugar
que ele mais curte: a cozinha
O processo todo durou cerca de um mês, entre escolha de cardápio, elaboração de um convite, lista de convidados e mentalização do que seria a decoração. Aos poucos, as coisas foram tomando forma, e isso incluiu uma repaginada na casa, para celebrar os novos tempos. Na semana do aniversário do Luca, ele estava animadíssimo, e eu já estava correndo contra o tempo, pois trabalhando o dia todo e cuidando dele praticamente a semana toda, tempo é algo escasso na minha vida. O aniversário caiu num sábado, dia do nascimento dele mesmo, e na quinta lá fui eu na loja de festas escolher alguns itens para a decoração.

O local me agrada pela variedade e preços acessíveis, mas eu quase enlouqueci com tanta informação. Quando eu me preparava para sair de lá com pratos do Pocoyo e bandejas de joaninha, achei que era a hora de pensar um pouco mais sobre qual cara eu queria dar para a festa dele. Pois, como o Luca não tem um personagem preferido, e não me demanda essas coisas (ainda bem!), teria eu que intuir o que mais o agradaria, e fui fazendo isso a partir da observação memso. O personagem Pocoyo sempre foi favorito, então ele prevaleceu sobre a joaninha. Balões coloridos, prato para colocar o bolo, cestinha para pipoca e voilá!, não faltava mais nada.

Bolo Boluca, assim batizado
O bolo eu decidi fazer, pelas doces lembranças que tenho dos aniversários, com minha mãe fazendo bolo pra mim (e eu raspando a panela - coisa que o Luca não curte). Fiz um bolo integral de banana, invenção minha, e que ele ama. Eu venho aperfeiçoando a receita há alguns meses, e ele já demonstrou a preferência dele em relação ao preparo. Já na quinta feira Luca estava me perguntando se iríamos fazer o bolo - ele costuma ser meu ajudante na cozinha - e, quando mostrei pra ele o prato onde ficaria o dito (um desses de plástico acrílico, transparente), ele logo se apressou em pegar, e colocar dentro do forno desligado, dizendo: "mamãe, to fazendo o bolo!". Algum tempo depois, quando ele já estava dormindo, entrei na cozinha para começar a fazer uma parte dos salgados, com uma receita de chips de batata doce que eu também vinha testando há algumas semanas. Liguei o forno enquanto preparava as ditas na assadeira. Não preciso dizer o que aconteceu com o prato, né, que está ate  hoje derretido em uma das grelhas do forno... Fuém, fuém, fuém...

As comemorações na creche começaram na véspera
Como o aniversário dele caiu num sábado, o parabéns na creche aconteceu na sexta. A creche onde ele está não permite festas  dentro do estabelecimento, por causa dos excessos de pais e mães em relação à comida, sempre pesando no lado junk. Eles são realmente bem rigorosos quanto a isso, inclusive toda a alimentação é produzida lá e isso é motivo de muita satisfação para mim. Então, se por um lado, nossos filhos fazem aniversários apenas uma vez por ano, é preciso multiplicar isso por 20 crianças para entender que a preocupação com o projeto nutricional da instituição é real nesses casos... Então eles só cantam mesmo um parabéns, colocam uma placa na porta, acendem uma velinha e deu. Quem gosta de pompa são os adultos, deveríamos aprender mais com as crianças sobre o prazer das coisas simples. Ele ficou animadíssimo, e já foi esquentando o clima para o dia seguinte.

Na sexta de noite fizemos o bolo e aí decidi fazer uma cobertura que nunca tinha feito, dica da Marina, que é super mestre cuca. A receita é à base de mel, cacau e azeite. Na hora que ficou pronta eu detestei o sabor, lamentei pelo vacilo da minha amiga tão boa com as panelas e imaginei que criança nenhuma iria gostar daquilo, além do que iria arruinar meu bolo, esse sim delicioso -  modéstia à parte... Resolvi ir dormir, pois era muito tarde, e achava que uma noite de sono me faria encontrar uma solução para aquilo. Sábado bem cedo levantei e pensei que adicionar mel na cobertura já pronta, dando o ponto com água, iria resolver. E assim foi, o resultado final foi delicioso, e a cobertura está brilhando no bolo até agora, o que foi o mais legal! Para decorar, aproveitei a fixação recente do mininu com a letra L e fiz o desenho com M&M de chocolate, a única coisa junk da minha nobre iguaria, feita inclusive com bananas colhidas do meu quintal. Ele comeu um monte deles enquanto eu decorava, e eu só avisando que ia dar dor de barriga, que ele não estava acostumado. Ele, por óbvio, não me ouviu (quem é capaz de ouvir com um saco de M&M na sua frente?), e eu deixei rolar. A conta veio no dia seguinte, em forma de fraldas sujas...
Quem resiste ao M&M?

Capítulo à parte foram os balões, que eu nunca gostei muito de encher, mas festa sem balão não é festa. Não essas superproduções de coroa de balões (é assim que chama?), desenhos elaborados ou congêneres. Mas simplesmente balões pendurados na parede dizendo que aquela casa está em festa. Resolvida a questão de quem iria encher, restou a parte de amarrar e pendurar. A amiga Dulce foi com a Nina, filha de 4 anos, lá em casa, e nem preciso dizer que foi mais bagunçado que qualquer outra coisa, ela e o Luca ficaram aceleradíssimos com tudo aqui. Mas no final fomos capazes de organizar tudo, e depois que ela foi embora eu pendurei uma parte dentro de casa e deixei a da parte externa para a manhã seguinte. Ela ainda achou que atrapalhou mais do que ajudou, mas se ela não tivesse ido, a coisa certamente teria sido beeem mais complexa. E o fato dela ter ido ainda com sua outra bebezinha, de somente 3 meses, só me fez ser ainda mais grata a ela!

Selfie de aniversário!
Sábado de manhã eu estava uma pilha de ansiedade, e depois de ter afofado muito o guri pelos 3 anos recém completados, eu já comecei a me perceber irritada com qualquer coisinha, o que é esperado quando se está organizando um evento, mas peraí, não era qualquer evento, era o aniversário do meu guri, o dia que me tornei mãe, um dia para nunca esquecer na vida. Respirei muito e muitas vezes bem fundo, para lembrar que o objetivo principal era me divertir, o Luca se divertir, e a gente celebrar esses 3 anos de muita parceria, iniciados numa dança há dois às 5h da manhã do 31 de maio de 2011 e que só terminou às 23h10 do mesmo dia, quando ele saiu para esse mundo para mudar tudo dentro de mim. Como já escrevi antes, ele chegou para abalar minhas certezas sobre o mundo, sobre as relações, sobre o amor. Ele chegou para me convidar a descobrir as coisas que existem ao nosso redor pela segunda vez, desde uma cor até o aroma de uma flor, o que é de longe a experiência sensitiva mais fantástica da maternidade. Ele me ensina todos os dias a ter paciência e a construir pedra depois de pedra um caminho contínuo para realizar nossa relação, nossa convivência, nosso amor. Sou muito grata por ter sido instada a ser mãe de um menino tão calmo, tão simples, tão esperto e tão lindo como ele é. Que venham os próximos aniversários, que nós adoramos uma festa!

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Separações que nunca têm fim




(Esse texto, pra variar, começou a ser escrito meses atrás, e só agora eu o retomo. A vida vai encaminhando a gente pra onde ela é mais premente, e nos cabe acompanhar... Nesse meio tempo voltamos de férias, começamos um trabalho novo, mudamos de casa, estamos vendo dentes nascer, mudando o tipo de fralda e até indo ao salão cortar o cabelo pela primeira vez. E com tantas novidades e acontecimentos cotidianos se passando, quando a pulsão de escrever e compartilhar retorna, a gente atende, pois sabe que é a hora...)

Ultimamente, de forma mais ou menos contínua, eu tenho percebido em mim uma necessidade intensa de estar perto de Luca. Tenho ímpetos de parar tudo que estou fazendo e ir busca-lo na creche. Impulso de ir dormir no quarto dele à noite. Uma vontade de sentir seu cheiro, estar perto da sua pele, grudados e inseparáveis, como fomos um dia.
 
Tudo começou no final do ano passado, quando iniciei um processo de questionamento interno das escolhas após o fim da licença maternidade, da minha vida profissional versus as necessidade de Luca, da nossa vida financeira se apenas o Edu fosse o responsável pelo sustento da casa, e eu arcasse com a tarefa do cuidado da casa – e das pessoas que a habitam. Isso porque Luca passou uma fase difícil na creche, não queria ficar lá de jeito nenhum, nenhum dia. Com nenhuma das educadoras, até a que ele mais adora. Pra mim foi torturante ter que deixa-lo em lágrimas ali naquele local, longe mim, dia sim e outro também. Por mais que ele se acalmasse rápido, às vezes até na minha presença, e depois seguisse bem o resto do dia, me odiava por fazer isso. E me sentindo muito mal por não ter como ficar com ele antes que as férias começassem, pois tinha um contrato de trabalho a honrar.

Mas felizmente logo vieram as férias, e curtimos à beça essa simbiose em tempo integral, vi meu bebê virar um papagaio tagarela, começar a formar frases, comer sozinho e crescer, crescer e crescer. Luca teve seu primeiro Natal, que nunca nem fiz muita questão, mas vibrei ao vê-lo seguir com a gente noite adentro na janta familiar que fizemos por aqui, super companheiro. Justo ele que adora dormir antes de escurecer e acordar antes de clarear... rsrsrs... No ano novo a coisa quase se repetiu, mas quando sentimos que ele estava pelas tabelas, viemos pra casa, e celebramos a chegada de 2013 a dois, com ele dormindo placidamente.

Também nas férias, decidimos desmontar o berço e abrir para Luca novas possibilidades para a hora de dormir, com mais autonomia para ir e vir da sua cama e de seu quarto. Não foi simples, o guri se mexe demais, e não foram poucas as vezes que fomos resgatá-lo obstruindo a porta ou deitado no meio do chão frio, chapado, dormindo profundamente e sem acordar ao ser “guinchado”... Passamos mais uma temporada na casa dos meus pais, que também curtiram demais as novidades que essas visitas sempre levam pra vida cotidiana deles – e pra de Luca também. Vimos amigos, amigas, filhos de amigos, e eu sempre percebendo em Luca o grude, a necessidade constante de não se separar de mim por nenhum momento.

E à medida que foi se aproximando o dia de voltar pra creche,  fui eu pensando como ia ser, se ele ia chorar, se ele ia querer ficar. E construindo cenários imaginários na minha cabeça para o caso de ele não querer, de ser sofrido demais. Fui preparando mininu pra esse novo começo também, falando pra ele que ele ia voltar pra creche, que a mamãe ia voltar a trabalhar. E Luca fala: “não”. Putz. Lá vou eu explicar pra ele, da forma mais simples possível, que era preciso, e que ele ia ficar bem.

Apesar de toda receptividade da creche para a minha preocupação, eu sabia, dentro de mim, que não se tratava do atendimento que ele recebe lá. Trata-se da nossa relação de mãe e filho, desse binômio HeloizaLuca que cada dia que passa começa a dar espaço à mãe e ao filho como indivíduos emocionalmente integrais. Luca está às portas de completar 2 anos, e tem dias que eu queria que ele fosse um bebezinho que só dormisse no peito, como foi por tanto tempo. Que ele fosse leve o bastante para que eu ficasse horas com ele no colo sem sentir dor na coluna. E que ele quisesse ficar horas no colo, pois hoje em dia seus interesses são outros.

Luca nasceu descobrindo o mundo com a boca, depois passou para os olhos, as mãos, agora os pés. Quer ter autonomia, ir e vir, brincar de uma coisa e depois de outra. Já sabe comer sozinho e beber água no copo comum. Não dorme sem a mamadeira, mas adormece sozinho. Afirma diariamente seus desejos e suas preferencias. Sabe dizer não, e justamente hoje, indagou seu primeiro “por que?”. Está aprendendo a falar em primeira pessoa, falar “isso é meu”. E também sinaliza quando a fralda está suja, sem confundir uma coisa com a outra. Meu bebê está virando uma criança, bem devagar, bem aos poucos, mas está. Ele ainda depende de mim pra coisas como tomar banho, se vestir, e entrou numa fase de pesadelos, de ter medo de barulhos repentinos (isso ele sempre teve, na  verdade).

E aí meu eu se divide em dois, de um lado eu me emociono quando me dou conta desse amadurecimento, do desenvolvimento dele nesse processo de se descobrir no mundo. Mesmo sabendo que nosso vínculo estará sempre aí, e irá se atualizar e se transformar à medida que o tempo for passando, bate a melancolia, a sensação de que cada dia mais ele será menos meu e mais do mundo, mais para o mundo.

E aí dá aquela vontade maluca de sacar um cordão umbilical e amarra-lo junto a mim novamente.

O sentimento é tão instintivo como era o ato de levantar de madrugada para atende-lo, ou para acudir o pai quando esse não conseguia acalmar o guri. Estar junto é uma necessidade, daquelas vitais, tipo respirar. Despertamos na mesma hora, quando vou coloca-lo pra dormir, adormeço também. Pois é, acho que estou sofrendo de ansiedade de separação às avessas...


Mas num sentido positivo, ao reconhecer que se trata de um processo de separação mesmo, e que traz ansiedade. De reconhecer que a fase dele de sair da simbiose está chegando, e ele se interessa muito pelas coisas do mundo, a ponto de aceitar se separar de mim, ou até de não querer meu grude (tipo a mãe louca querendo dar ataque de beijo no filho que está entretido com uma brincadeira e ouve: “num qué ataki de bêdô”).

E que isso significa que a minha fase de sair da simbiose também está chegando. Que sim, ainda vamos precisar muito um do outro, para muitas coisas, porém cada dia que passa caminhamos para existir mais como sujeitos (eu pela segunda, ou terceira vez, se contar os meus 2 anos) e não como binômio. E isso, longe de afetar nossa parceria, só vai fortalecer, dentro de um processo que começou no dia em que ele saiu de dentro de mim. Cada dia maior, mas sempre com espaço garantido nesse colo de mãe que nunca terá fim.




quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sobre perdas irreparáveis


O incêndio  na boate de Santa Maria/RS promoveu uma comoção nacional em torno das vítimas, 235 até a data de hoje (já que muitas permanecem internadas), e uma grande discussão sobre a segurança das casas noturnas em todo o País. O episódio, que começou na madrugada de um domingo, mexeu com a rotina da casa pois tirou Edu de casa, que teve que ir atrás de imagens da tragédia para um cliente para o qual presta serviços de jornalismo. Ele não precisou se deslocar até lá, e conseguiu intermediar as imagens, para uma agência internacional, via telefone e internet. Mas até ele cruzar a porta de casa eu ainda não conseguia entender como um incêndio no interior do Brasil estava chamando tanta atenção da imprensa internacional. À medida que as informações foram chegando, é que fui me dando conta da gravidade da situação.

Eu me lembro que última vez que fiquei transtornada com uma tragédia desse porte, foi no acidente da Air France, em 2008, que o avião caiu no meio do mar. Lembro de olhar para as pessoas na rua e me dar conta da fragilidade dos seus corpos, da possibilidade de algo terrível acontecer com eles, assim, de repente. Mas dessa vez foi diferente. Porque dessa vez eu sou mãe. De um bebê, sim, mas acontece que bebês crescem, se tornam crianças, adolescentes, jovens. E saem pra baladas, como essas e como outras, como muitas que eu já fui e nunca sequer me passou pela cabeça imaginar que poderia estar correndo algum risco de vida.

Quando eu li no letreiro da TV, por volta de 10h da manhã, que 180 mortes já haviam sido confirmadas, só fiquei pensando nas mães daqueles mortos. Pensando que elas estavam em casa no sábado à noite, interagindo com filhos e filhas enquanto esses se preparavam para sair e passar a madrugada fora de casa, para onde provavelmente retornariam somente quando o sol já tivesse dado as caras. Só que não. Eles não chegaram. E não deram notícias. E elas provavelmente devem ter ligado para os celulares das crias, que foram ouvidos apenas pelos bombeiros e os sobreviventes. E fiquei pensando como seria a próxima ligação que elas receberiam, solicitando que comparecessem para fazer um reconhecimento.

Como lidar com um sentimento desses? Sempre ouvi que filhos não devem morrer antes dos pais, é contra a natureza das coisas. Parece lugar comum, mas é cruel demais. Depois que Luca nasceu, estaria mentindo se não me preocupei que algo fatal pudesse acontecer a ele, claro que pensei. E temi, como temo diversas vezes, que um medo sem razão aparente se abate sobre mim. Um medo de nunca mais vê-lo, de não poder abraça-lo, vê-lo descobrir o mundo, sentir seu cheirinho de neném que eu gostaria que ficasse nele pra sempre.

E concluo, como concluí pouquíssimo tempo após seu nascimento, que da morte de um filho a gente nunca se recupera. E, mais que isso, quando uma mãe fica órfã de seu filho, é como se todas nós, mães, ficássemos um pouco órfãs também. É uma perda irreparável, a potência que não se transformou em ato, como orientava o filósofo, há muito tempo atrás.

Mas, do alto do meu lugar de mãe de um guri com quase 2 anos, que começa, dentro dos seus limites, a reivindicar sua própria autonomia, à medida que adquire consciência de que é um sujeito nele mesmo, como lidar com o fato de que, sim, bebês crescem, e tendem a buscar cada vez mais o mundo, longe da gente? É uma questão difícil, e que uma tragédia como essa traz à tona da forma mais cruel possível: não, ninguém está livre de ser uma vítima fatal num evento trágico como esse.

Luca irá crescer, irá amadurecer, e vai começar a buscar seu lugar no mundo de forma cada vez mais consciente e ativa. E isso significa que eu, mãe dele, não poderei mais protege-lo das quedas, como faço hoje em dia, que ele ainda não se equilibra direito sobre as próprias pernas. Significa aceitar que crescer implica sim, em algum nível de sofrimento, porque o sofrimento também nos ensina muitas coisas, como ensinaram a mim, e a meus pais também. Crescer, também, implica em assumir responsabilidades pelas próprias escolhas e às vezes a gente se equivoca nas escolhas.

Talvez eu esteja chovendo no molhado por dizer tudo isso, mas acho que o post é um desabafo, uma necessidade interna de me conformar que não, não tem mais volta. Coloquei um ser humano nesse mundo, e ele terá o direito de viver como desejar, correndo os riscos que isso implicar. E como negar-lhe esse direito? Como querer que ele viva enrolado no plástico bolha? Sim, coisas ruins, ou muito ruins, podem acontecer, como aconteceu com esses jovens, que perderam a vida, e com suas mães, que perderam seu legado, seu futuro. Mas viver é sempre um risco. Olhando pra trás, com meu olhar de mãe, perco a conta de quantas as situações em que estive envolvida e representavam um tremendo risco e eu, paradoxalmente, me sentia segura.

Então, se tem algo que essa tragédia me ensinou, além de passar a conferir a existência de extintores de incêndio e saídas de emergência em cada lugar fechado que eu adentrar a partir de agora, é que preciso me conformar com o fato de que o meu controle sobre Luca é inversamente proporcional à autonomia que ele começa a reivindicar. Poderei e irei orientar, conversar, ser uma boa ouvinte, um pouso seguro. Segurar sua mão e coloca-lo no meu colo para consola-lo. Velar seu choro e silenciar com ele. Torcer para que as quedas não sejam irreversíveis, não seja irreparáveis. Mas infelizmente não poderei, como desejo todas as vezes que ele adoece e chora com muita dor madrugadas a fio, coloca-lo de volta na minha barriga a cada vez que algo ruim lhe acontecer. O útero, o lugar mais seguro do mundo é, infelizmente, incompatível com estar no mundo.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Rasgando os medos

Hoje a postagem é um pouco diferente... Não faz parte do meu costume nesse blog publicar escritos de outras pessoas, mas esse relato de parto da Elisa Costa realmente me tocou... além de eu ter me identificado com vários sentimentos que ela descreveu, a forma como ela elaborou as lacerações que teve é digna de uma mulher que encontrou seu lado mamífera no momento em que se tornou mãe da Maya, no dia 29 de outubro desse ano de 2012. Nós nos conhecemos por meio de um grupo eletrônico de mulheres de Brasília que pariram em casa, ou planejam fazê-lo. Já citei esse grupo numa outra postagem e no quanto ele tem sido enriquecedor para minhas vivências e conhecimentos... Bem, a autora encaminhou o relato no dia 12.12.12 e me autorizou a publicar, e por isso eu compartilho essa história com quem costuma frequentar esse mural eletrônico...

(...)


"Transformação, foi essa condição mais marcante da minha gravidez. Antes de confirmá-la já havia algo em mim que indicava que muitas mudanças iriam acontecer. Oscilando entre o desejo de ser mãe e o medo de assumir a maternidade descobri-me grávida e um novo mundo se abriu. Era uma menina, muito embora minha intuição confirmasse a espera de uma princesa, o racional aliado com toda a sabedoria popular, do tipo: “você está com cara de menino, olha sua pele..!” me confundiram, não confiei no meu feling, até confirmar que Maya estava a caminho. Dei-lhe o nome de uma deusa indiana por sua simbologia e poder: tornar o impossível possível. E a espera trazia algumas certezas, que ela viria com a força de uma devi, a força para transformar-me, transmutar-me, mudar meu mundo, minhas convicções e por isso tinha certeza que ela chegaria sob a energia do signo de escorpião, que representa a morte a transformação.

A gestação preparou-me num processo de emponderamento aliado ao desejo de que Maya chegasse ao mundo de forma amorosa e respeitosa. Sabia que seria preciso mobilizar muita energia para um parto humanizado, sair do modelo obstétrico convencional e todos os procedimentos intervencionistas desnecessários. Apresentada por uma amiga, foi assim que a enfermeira Iara Silveira entrou na nossa história. No quarto mês de gestação consegui levar Juan a palestra aberta para esclarecimentos sobre o parto domiciliar. E aí nasceu o embrião da ideia de parir em casa, parir dentro daquilo que acreditávamos. Juan topou e embarcou comigo nessa jornada. Seguimos com o pré-natal convencional com um obstetra e planejamos começar o pré-natal com a equipe da Iara quando completássemos 30 semanas de gestação. O plano inicial era ir a Brasília para ter nosso parto na casa de uma prima do Juan. Entretanto a história foi ganhando outros contornos. Existia também a possibilidade da ausência da Iara na data em que eu completaria 40 semanas e isso acendeu a alternativa de seremos assistidos por outra enfermeira, também de Brasília, juntamente com uma doula experiente. A Iara se dispôs a participar do parto se ela estivesse em Brasília na data, Anápolis fica a 150 km da capital federal. 

Começamos o pré-natal na 30 semana e tudo indicava um parto normal já que a gravidez era de baixo risco. A Iara contactou outra equipe de apoio para sua eventual ausência, dessa vez de Goiânia – 50 km de Anápolis. E assim conhecemos Diego e a doce Marcela, enfermeiro e doula.  Na 38 semana tivemos uma consulta em casa com toda equipe e acertamos os detalhes do parto em casa. Como todo parto domiciliar planejado precisávamos de um plano B em caso de emergência e uma possível transferência para um hospital. Assim procurei um médico amigo e coloquei-o a par do plano de parto domiciliar e pedi-lhe apoio em caso de transferência para uma cirurgia. Deixei de trabalhar na 37 semana e a essa altura já existia toda um energia de ansiedade em volta de mim, e ouvir coisas do tipo: “sua barriga está baixa, hein!?”, “de tal dia não passa”, etc e outras coisas tão comuns ao fim da gravidez. A essa altura eu já dava sinais típicos que o parto se aproximava, tal como a vontade de ficar no ninho, não ver e falar com ninguém, sentia toda a minha parte animal, instintiva ativa, aquilo que negamos tão facilmente na nossa vida cotidiana.

Chegamos a 40 semanas pela DUM (Data da última menstruação) mas a equipe e o obstetra contavam a partir do primeiro ultra que apontava 39 semanas.  Aí sim a ansiedade começou a me consumir e o prazo de validade, me sentia como um iogurte na geladeira com data para vencer, da minha gestação não parava de martelar na minha cabeça. Apesar disso tudo a proximidade com a mudança da lua cheia e a coincidência dessa data com a contagem da 40 semana me deixava um pouco mais acalentada. Um pouco antes dessa data escrevi uma carta para Maya e conversava muito com ela pedindo sua chegada e contando que estávamos a sua espera com muito amor. No domingo, véspera do parto, combinei com a Maya que o dia seguinte era o grande dia, o dia de nos conhecermos. Para engrenar o trabalho de parto namoramos e saímos para uma caminhada. Me lembro que com aquele barrigão metros pareciam kilomêtros.  Depois do jantar por volta das 9h da noite comecei a me sentir estranha, inquieta e com contrações que julgei serem  pródromos, um novo falso trabalho de parto, que já se repetira há alguns dias.

Na incerteza de início de TP tentei dormir, até consegui por um tempo, mas fui acordada com as contrações mais intensas por volta de 11h da noite. Não havia posição, fui obrigada a sair da cama e me coloquei a caminhar pelo quintal a luz da lua cheia que iluminava aquela noite e no íntimo sabia que era o início do fim, do fim de quando ainda éramos eu e a Maya e partir dali seríamos duas, mas ainda ligadas. Com as contrações irregulares segui madrugada adentro, sem conseguir dormir. As quatro da manhã liguei para o Diego e para Marcela avisando, já havia uma consulta combinada no dia seguinte. Aconselhada por Diego consegui dormir um pouco, mas ainda me lembro de acordar entre uma contração e outra com pés suando frios. A consulta estava marcada para as 8h da manhã levantei as 7h e Diego me ligou perguntando como estavam as contrações, se irradiavam para as costa. Diante da minha negativa ele achou melhor esperar porque ainda podia demorar até o início efetivo TP. As 11h avisei uma amiga, Eva, que tinha iniciado o TP e combinamos dela vir me acompanhar até a chegada da Maya.

Ao meio dia liguei novamente para o Diego dizendo que as contrações estavam regulares, 5 em 5 minutos e irradiava para as costas, ele perguntou-me se havia perdido o tampão mucoso e como não havia perdido ainda me disse que esse era o sinal que o TP tinha começado efetivamente. Pediu-me para avisar quando isso acontece. Assim que desliguei ao ir ao banheiro para minha surpresa lá estava o tal tampão mucoso. Avisei o Diego e a Marcela que ficaram de se apressar e vir para Anápolis. Antes de almoçar fiquei um pouco só, pois o Juan tinha que resolver umas coisas antes do parto. Me lembro da mistura de sentimentos que esse momento trouxe estava só e não estava, éramos eu e a Maya e nos duas iriamos atravessar essa jornada juntas. Nesse tempo almocei e a Eva chegou e foi bom ter companhia.  A noção do tempo já estava completamente alterada e já não saberia dizer quanto tempo levou para que as contrações passassem de 5 em 5 para 3 em minutos. Acho que nesse momento entrava na tão falada partolândia, algumas coisas deixaram impressões bem marcadas em mim, tal como a delícia de ouvir o canto dos pássaros entre uma contração e outra. Instintivamente queria ficar de cócoras, agachar mais me contive porque havia tido problemas de hemorroidas no fim da gravidez e tinha medo de agravar com o parto.

Em algum ponto no meio da tarde, quando as contrações já duravam muito tempo, Eva teve que sair e enquanto o Juan se ocupava de encher a piscina. Diego e Marcela estavam a caminho mas houve um acidente na estrada que retardou a chegada deles. Não havia mais posição, lugar e como se eu não coubesse mais em mim, me lembro de deitar na cama e a música do Djavan invadir a cabeça: “..por ser exato o amor não cabe em si por se encantado o amor revela-se por ser amor invade e fim...” queria ouvi-la mas não houve tempo. Nesse momento a bolsa estourou e ao mesmo tempo Diego e Marcela chegaram. No primeiro exame de toque, 6 cm de dilatação, cabeça baixa. A Marcela pegou a bola e rebolando deixei o corpo fazer o que devia ser feito. Pela boca os sons saiam e abriam caminhos para chegada da Maya. As contrações já estavam tão próximas umas das outras e pareciam durar uma eternidade. Quis entrar na piscina e a água quente era como se tirasse toda dor com as mãos. Contudo a água retardou as contrações e em algum ponto pela posição a piscina deixou de ser confortável. Desejei voltar para bola e já não fazia ideia das horas e como me sentia direito, era como se eu fosse somente contração e muita pressão no reto que me confundia e me levava ao banheiro a todo momento. Um grande pulsar, mas havia torpor também. Uma vontade louca de deitar e dormir... Diego sugeriu que eu mesma fizesse o toque, pois já podia sentir a cabecinha dela no canal vaginal. E foi uma grande emoção sentir que ela vinha, que estava perto.

Nesse momento pedi para o Juan e Marcela cantarem “tu vens, tu vens eu já escuto os teus sinais...” e uma emoção tomou conta de mim, a constatação que minha filha chegava e partir dali tudo se transformaria. Senti que era hora de voltar para piscina e sair de lá com a Maya nos braços. Não queria fazer força no puxo, para não haver lacerações e muito menos problemas com as hemorroidas. Mas a posição que assumi na piscina não favorecia a descida da Maya. As luzes foram apagadas e acendemos apenas uma luz ao pé da piscina que dava uma cor azulada maravilhosa. E mesmo ouvindo da Eva, Diego, Juan e Marcela que podiam ver a cabecinha dela não acreditava e gemia a cada contração. Me sentia como um animal ao gemer (minhas testemunhas me disseram que fui extremamente comedida em gritos e gemidos, mas essa não era minha percepção). Foi preciso que o Juan entrasse na piscina para parir junto comigo. E com muita massagem da Marcela para soltar as pernas que eu travava a cada contração e o Juan segurando-me em cócoras a Maya atravessou a passagem e nasceu as 20h55, segunda-feira, 29 de novembro, lua cheia. Com uma circular de cordão, 3.100 kg e 51 cm, Diego amparou a nossa pequenina nos e colocou sobre meu peito. E nesse ponto não sei traduzir em palavras como senti, amor, dor, felicidade, alegria, medo. Tudo ao mesmo tempo. Chorava e ria essa era minha expressão nas fotos. Assim ficamos pelos primeiros minutos da vida da Maya. Enquanto ela me olhava e eu abraçava e me preocupava porque não chorava.

Mas esse instante foi tão rápido que logo pude ouvir seu chorinho e o cheiro que nunca mais vou esquecer, cheiro de amor. Era assim que a casa cheirava. Ainda levamos três horas para parir a placenta. E na cama com Maya no peito e ainda ligada a mim pelo cordão recebemos as primeiras visitas. Já não importava mais, pois minha pequenina cumpria sua primeira missão no mundo, unir, trazer amor. Três pontos foram necessários, houve uma pequena laceração embora eu não tenha feito força. Com relação a laceração passei avaliar da seguinte forma: o medo é algo presente no parto, mesmo que você não admita ela estará lá, porque é ele que te preserva. O medo é algo constante em minha vida, afinal são três planetas numa casa só e isso, segundo minha astróloga, isso gera um medo. Nunca admiti na gravidez a presença do medo e foi preciso que a Maya chegasse e “rasgasse” esse medo, me livra-se de uma porção de coisas. Não me arrependo nem um minuto da minha escolha, Maya nasceu no seu próprio quarto e tudo que foi preciso foram muito amor, apoio e deixar a natureza agir. O parto deve atender ao desejo da mulher e esse foi o meu desejo, o meu parto. Sou eternamente grata a a equipe: Iara, Diego, Marcela, Eva e Juan que me apoiaram e puderam facilitar a vivência da experiência mais transformadora da minha vida."