terça-feira, 16 de setembro de 2014

Uma mente infantil

O nascimento de uma criança nos coloca frente a frente com nossos instintos mais biológicos, e também nos confronta com um ser completamente dependente de nós, que tem poucos recursos para comunicar o que necessita para sobreviver nesse mundo. Muito se fala, então, sobre o choro de uma criança e os seus significados. Muitas teorias surgem tentando justificar o "deixar chorar" e o "não deixar chorar". Há quem defenda que deixar chorar ensina (a dormir, a esperar etc.). Eu sou daquelas que acredita que deixar chorar ensina, sim: ensina que não podemos confiar nas únicas pessoas que temos nos mundo, aqueles que nos fizeram, que nos emprestaram uma parte de si para que pudéssemos existir. Bem, então, de minha parte, realmente nunca deixei o Luca chorar, assim, por chorar. Sim, o choro dele já me deixou desesperada, angustiada, me sentindo péssima mãe por não conseguir conter ou compreender o que ele significava... Mas sempre entendi o choro como uma forma de comunicação que o bebê estabelece conosco.

E por isso mesmo, enquanto ele só tinha o choro para se comunicar e dependia do meu colo para se locomover, e do meu leite para sobreviver, sempre vi o Luca como um bichinho, como qualquer outro mamífero. Passei a compreender que o que nos diferenciava dos outros animais era a capacidade de articular a fala, a linguagem e, com isso, dar nome e significado às coisas do mundo. E, tal e qual tantas outras coisas na maternidade, o aprendizado da fala é um evento cujo o desenrolar, ao longo dos meses, é simplesmente fabuloso de observar e desvendar.

Quando ainda estava grávida, lia muitas coisas sobre como se comunicar com o bebê, e a importância de ir nomeando o mundo para ele. Ficava olhando com um certo estranhamento para a ideia de conversar com um bebê que só sabia mamar, dormir e, eventualmente, chorar para pedir alguma dessas duas coisas. Mas não demorei muito a entender que os sons guturais que ele fazia, ainda recém-nascido, eram uma outra forma de comunicação. Que com poucos meses de vida, já era possível diferenciar esses sons como expressão de prazer ou desprazer. E que isso fazia parte do processo de se tornar mais humano e menos animal.

Tenho doces lembranças do período em que estive de licença maternidade e ia semanalmente ao mercado comprar frutas. Saía a pé, com ele no sling, e ia papeando com ele como quem conversa com uma criança que já anda e fala com mais desenvoltura. Mostrava as árvores, falava das cores dos céus e dos passarinhos, mostrava as crianças brincando nos parquinhos da vizinhança. O Luca pouco notava o que eu mostrava pra ele, ou melhor, pouco expressava notar alguma coisa. Olhando em retrospectiva, tenho clareza que aqueles passeios todos foram sendo gravados na sua memória e foram uma influência benéfica para o que veio depois...

Perto de fazer um ano, ele já tentava articular sílabas, apontava objetos e, de alguma forma, tentar expressar, segundo a nossa linguagem, os seus desejos. O choro, e os sons guturais, claro, ainda seguiam sendo o auge da sua capacidade de expressão. Por volta dos 10 meses, eu e ele tínhamos uma brincadeira: ao chegar em casa da creche, eu colocava ele no meu colo, depois de mamar, e ele começava a apontar os diversos objetos que via na sala, querendo saber o nome. Quadro, controle remoto, TV, sofá, cadeira. E a brincadeira era tão séria, que ele tinha uma ordem, e quando ele saía da ordem, caía na gargalhada. Ele sabia exatamente o que estava querendo saber, e tinha o protagonismo naquele momento sofisticado de comunicação.

Não demorou a começar a falar mamãe e papai, mas eu achava curioso como ele não nos chamava; ele se referia a nós em terceira pessoa, como em tudo. Sim, não havia diálogo, não era uma conversa como conhecemos entre adultos com  fala desenvolvida. Era um amontoado de sílabas e palavras que ele estava apreendendo o significado. Escolhia o que queria aprender a partir daquilo que mais despertava seu interesse. Uma das primeiras palavras que ele tentou articular foi: liqüidificador. Não estou querendo ser uma mãe esnobe ao afirmar que meu filho pediu para fazer suco de manga no liqüidificador com um ano de idade. Luca simplesmente se divertia com o barulho do liqüidificador ligado, e quando ele ria, eu falava o nome. E ele começou a se referir ao dito como "li". "Li", e apontava para o tal. A gente ligava o liqüidificador, ele caía na risada e "li".

Aos poucos, as sílabas foram saindo da boquinha dele: "liki", "licador", "liquiiiiador", e em alguns meses ele já conseguia articular a palavra completa. O desabrochar da fala é algo fascinante nas crianças, e eu adorava ouvi-lo repetir esse processo com muitas outras palavras. Até que em algum momento ele entendeu que existiam... os pronomes. Meu copo, seu copo. Meu prato, seu prato. Luca colocou praticamente a família inteira e os amigos próximos malucos tentando entender a lógica com que ele utilizava os pronomes. Como a criança aprende basicamente por repetição, ele simplesmente reproduzia o que eu falava pra ele: "filho, vou pegar seu copo, tá?"; "filho, vou fazer seu prato de comida, viu?", e por aí vai. E quando queria algo, dizia: seu copo, seu prato, seu garfo, seu brinquedo. E, claro, o interlocutor desavisado olhava e dizia: "não, é seu". Sim, ele sabia que era "seu". "Seu", naquele estágio da linguagem dele, era "meu"! E eu simplesmente vibrava quando sacava que o raciocínio inverso também era válido: ao se referir a algo meu (meu, de sua mãe), ele dizia: "meu chinelo"... É, amiguinhos, desvendar a mente infantil não é tarefa para os fracos. Comunicar-se com ela, então...

Porque um belo dia ele entendeu que se dissesse "mamãe" com uma determinada entonação, seria atendido. E aí passava horas a fio me chamando sem querer me dizer nada, pelo simples prazer de... me atormentar? Não, de observar minha reação diante do chamado dele. E nisso ele já tinha passado de um ano e meio, seu vocabulário havia crescido muito e ele era capaz de escolher entre duas frutas ou dois brinquedos, de dizer sim ou não para o banho ou hora de dormir. E, então, ele descobriu que existiam... verbos! Sim, e verbos que podiam ser conjugados. Sim, meu menino, prestes a fazer dois anos, já sabia estabelecer diálogos curtos, expressar o que queria por meio de frases imperativas, como:

- Deixe que eu pegue.
- Deixe que eu faze.
- Deixe que eu abre.
- Eu sabo.
- Eu quelio (brincar mais, comer mais etc.)...
- Deixe que eu pose/ponhe.

Nessa altura do campeonato o guri já se comunicava praticamente como um adulto, pelo menos comigo e com o pai, pessoas com quem ele tinha mais intimidade. Não havia dificuldade em compreender o que ele pedia, mesmo sem ter a capacidade de articular todas as palavras, ou de pronunciar todos os fonemas. E, como ainda operava muito por meio da repetição, de vez em quando saía uns "puta que paliu", "caiaio", "fola", "meda"... Tá pensando que é fácil? Sabe de nada, inocente!

E ele, que sempre anda muito de carro comigo e me ouvia, ao parar no posto para abastecer, pedindo "100 reais de álcool", um dia nos deixou por algum tempo tentando decifrar o que era "sem eais di alco", assim, no meio de uma refeição. Algo que ele lembrou e falou e morreu de rir quando eu repeti, sinalizando que havia compreendido o que ele queria dizer. De longe, essa é uma das partes mais deliciosas desse processo: a alegria do guri quando ele se sente compreendido naquilo que expressa. E num momento que a fala, e a capacidade de dialogar ainda estão se articulando, trata-se de um desafio para a criança, articular seu pensamento, expressa-lo, ser ouvida e, mais que isso, entendida. Como não ficar alegre quando atinge esse resultado?

Há pouco tempo, próximo de completar 3 anos, a criança pareceu ter engolido a pílula do doutor caramujo, que fez a boneca Emília começar a falar para nunca mais parar, deixando a mim, tal como Narizinho, atordoada, principalmente quando começamos a primeira dose por volta das 6h da manhã (de um domingo).

E, deliciosamente, Luca começou a compartilhar comigo a visão dele do mundo que está começando a descobrir e atribuir sentidos, completando ciclo da fala. E que se articulou muito bem com a paixão dele pela música, pelo aprendizado de cantar, pela identificação das canções ao ouvi-las, ainda que em lugares diferentes dos que está habituado. A criança ouve de David Bowie a Doces Bárbaros, e diz, de Starman: "eu só eu e o David Bowie sabe cantar, você não sabe, mãe!".

Claro que ainda há um longo processo, ainda são muitas as vezes que ele não consegue articular as palavras, e chora, para depois falar. Que ele responde perguntas presentes com referências do passado. Que ele se confunde e não consegue expressar se está sentindo fome, frio, dor ou sono. Mas ele conta histórias mirabolantes, desde pegar uma escada bem grande para subir até a Lua, ou me perguntar se ela está grudada no céu. Querer saber se macacos comem banana com casca, ou se jacarés comem gente. Se a Torre de TV é a mesma Torre do "livro de Paris", que temos aqui em casa. Se o gato é uma pessoa, que o leão é um cachorrinho.

Aos poucos, as histórias fantasiosas dele revelam suas emoções, como quando ele diz que jogou todos os amigos no lixo, porque estavam "deselegantes", e depois jogou a tampa do lixo fora. Quando diz que cortou o braço do amigo que o mordeu na creche, ou que não queria emprestar um brinquedo. E revelam também suas dúvidas sobre se eu estou compreendendo o que ele me diz, quando ele pergunta que eu "percebi" que ele falou manga, mas era abacate (e, na verdade, "percebi" é "entendi"). E eu me orgulho de mim mesma como mãe quando consigo compreender o que ele diz, mesmo que ele use o verbo errado, porque nossa comunicação começou no útero, com os soluços que ele tinha e os chutes que me dava. Começou com a dança das contrações anunciando sua saída, com a língua pra fora indicando que queria mamar, com sua primeira gargalhada, com ainda um mês de vida. Com nossas conversas intermináveis indo e voltando do mercado, e ele com aqueles olhos de jabuticaba olhando o mundo com um estranhamento de revirar as mais profundas emoções, me convidando a descobrir o mundo pela segunda vez.

E agora, no estágio atual, está aprendendo a falar o "r", em prrrrrato, brrrranco, agorrrrrra. E faz questão de dizer isso para todos que encontra pela rua. E segue me questionando diaria e repetidamente por que venta, por que chove, por que a bandeira fica no mastro e por que ela balança, por que o caminhão tem caçamba e por que o poste tem fio ou tem lâmpada. Por que o sinal vermelho é pra parar e o verde para andar, por que ele não pode comer macarrão no café da manhã e bolo de chocolate no almoço, por que o metrô fica embaixo da rua, por que o carro tem volante e marcha. Por que hoje é terça e não sexta, por que ele faz aniversário. O que é verão, o que é inverno, o que vem antes, a primavera ou o "antono".

A mente de uma criança é divertida, por vezes ela chega a ser embriagante e lisérgica, mas sobretudo, ela é desafiadora. A mente infantil, no seu estranhamento do mundo que está sendo descoberto, nos faz questionar a lógica e a razão de ser de tudo aquilo que nos cerca e que talvez, justamente porque crescemos e deixamos de ser crianças, também desaprendemos a questionar. Vai, filho, vai questionar esse mundo em que você vive, pois se depender de mim, sua mãe, você jamais vai aprender a aceitar um "porque sim/porque não" como resposta!