sábado, 1 de abril de 2017

Outras palavras



Já tem tempo, muito tempo, que não venho a esse mural eletrônico contar as aventuras do meu Boluca. Não significa que histórias não estejam sendo escritas, contadas e vividas. Quem me acompanha no facebook acompanha muitos diálogos com ele ao longo desses anos, pequenas passagens de uma história que está se forjando nesse mundão. Um dia ainda escrevo um livro sobre isso, mas isso é assunto para outro momento.

Hoje o dia é de contar que o guri está começando a ler. Bem, como tudo na vida de um ser humano que está começando a trajetória nesse plano, estamos num processo, que iniciou um tanto depois dele completar 4 anos. Depois de dominar a fala, que foi o assunto do último post, quase 3 anos atrás, inclusive, o passo seguinte foi aprender a falar o alfabeto, a ordem das letras, as letras do próprio nome. Tudo isso incentivado na escola, diga-se de passagem um pouco a meu contragosto. Digo isso por que penso que vivemos um tempo em que cobramos demais das crianças, queremos que elas estejam à frente, que estejam preparadas, que se desenvolvam.

Quando na verdade elas sempre se desenvolvem. Todos os dias, nas atividades mais triviais e nas mais complexas. Os estímulos necessários são, de fato, muito simples de serem encontrados. Como quando, por exemplo, eu percebi o interesse dele pelas letras, comprei um alfabeto de borracha, imantado, e ele ficava feliz da vida brincando com as letras enquanto eu cozinhava. Sem essa de pedir pra escrever isso ou aquilo, seja livre entendendo o desenho das letras, "desenhando" o próprio nome, ou o meu nome, no caso, "Mamãe".

Esse olhar adulto-mercado-de-trabalho-competitivo, porém, nos impele a considerar que elas devem entrar no inglês com 2 anos, ter tarefas de casa aos 4 e ler antes de começar o período escolar destinado à alfabetização. Parece delirante, e é um pouco mesmo. A escola que o Luca está ainda que pega leve nesse sentido quando consideramos a média, sob o argumento de que quer preparar as crianças para o que elas vão enfrentar no ensino fundamental, sobretudo se a escolha da família for por um ensino mais tradicional.

E eles fazem isso de um jeito muito interessante, que é introduzindo o uso do uniforme sem abolir o da fantasia e do brinquedo, incentivando a autonomia e as responsabilidades com o próprio material, e mandando pra casa tarefinhas. E que são bem inhas mesmo, porque só pretendem estimular a atenção da criança para as instruções das professoras, e o hábito, em casa, de um tempo para se concentrar numa atividade que será cobrada na escola. Vão construindo, de um jeito bem bacana até, o ritmo, a rotina, para um percurso que será muito, muito longo na vida deles.

Pois bem. Nesse contexto as letras são apresentadas, e eu só não me incomodo mais porque tomei a decisão de absolutamente não incentivar ele a nada. E deixar que o interesse partisse inteiramente dele. Comemorando suas conquistas, claro, mas sem nem corrigir quando ele erra um letra, inverte ordem, enfim, deixando o barco correr completamente solto e livre.

Mas o piá é meu filho. Filho dessa mãe que ama os livros, as palavras, o conhecimento. É, ele não curte muito desenhar também. Então por mais que eu não incentive, está dentro de mim, exala em mim, e se transmite para ele. E aos poucos ele começou a ser capaz de ler sequências de letras, formando palavras, mesmo sem entender absolutamente o significado.

Me pedia para parar no meio da rua para ler.

Para não sair com o carro porque ele estava lendo a placa.

E num dia leu uma placa que vendia remédio para impotência sexual. Sim, ele leu “impotência se...al”. É, com 4 anos eles felizmente não conhecem todos os fonemas. Mas também não entendem o que leem, no máximo reconhecem o próprio nome. Assim, as professoras comemoraram num dia que ele leu “sabonete antisséptico”, e vieram me contar super felizes e orgulhosas. Mas ao ser perguntado por mim sobre o que significava, ele riu e deu de ombros. O que importa o que significa, não é mesmo? O barato é louco, mas o processo é lento. Como a vida deve ser.

Só que o desenvolvimento é uma marcha sem ré, então claro que o próximo passo seria ele entender o que lia. Mas antes de falar sobre isso, quero dizer que até o Luca começar essa fase, eu não havia me dado conta de como é o processo de aprendizagem da leitura. Claro, porque quando foi comigo eu não me lembro, e agora o Luca é meu primeiro e único filho. E é o que eu sempre digo, ter filhos é descobrir o mundo pela segunda vez. Na primeira vez não nos lembramos, não temos esse registro, e na segunda, ficamos maravilhados com esses processos. Bom, pelo menos eu fico.

Então eu achava muito curioso o fato dele conseguir ler as palavras, formar as sílabas, mas não entender o que estava lendo. Comecei a notar isso quando ele trazia as tais tarefas para casa, lia o que era pedido na folha de papel, virava pra mim e perguntava:

- O que é pra fazer, mãe?

Algumas vezes ele já vinha com a orientação na cabeça, porque a professora tinha explicado em sala, e me alegrava ver que ele conseguia prestar atenção e fixar o comando até a hora de estar em casa, com a tarefa para ser feita. Mamãe intelectual-cdf-estudiosa-cientista-pesquisadora-orgulhosa.

Mas, esses dias, não mais que de repente, ele estava jogando um jogo de tabuleiro com um amigo. O objetivo do jogo era montar uma pizza, e no tabuleiro se jogava um dado, andavam casas que davam direito a tirar uma carta, que poderia ser de sorte ou azar. Para saber, era necessário ler o conteúdo da carta. Eis que o amigo me chama:

- Tia, o que é voeê?
- Hein?
- É, tá escrito.
- Deixa eu ver.

Chego no quarto, o Luca me mostra a carta:

- "Sorte. Voeê”...
- Aqui não é “e”, filho.
- É sim.
- É não, olha de novo.

Aqui, um parênteses. Apesar de ter como conduta nunca corrigir, nunca ficar apontando o erro, nem na fala, nem na "leitura", chega um momento que a criança demonstra sinais de fragilidade quando percebe que não consegue acertar. E aí, no nosso papel de adulto, de observação silenciosa e paciente, algumas pontuações são necessárias, para que ele reveja o assunto, e tente acertar de novo. Treino é mais importante que acerto. Bem, então o guri olha de novo, e...

- Ah, vosssséééé... Você! “Você foi ao supermercado. Escolha um ingrediente.” Ah, eu ganhei um ingrediente!

E assim ele entendeu o que lia, e jogou o jogo feliz para sempre, sem precisar de ajuda para progredir no tabuleiro. E fez uma mãe flutuar de alegria e felicidade por mais essa conquista.