O incêndio
na boate de Santa Maria/RS promoveu uma comoção nacional em torno das
vítimas, 235 até a data de hoje (já que muitas permanecem internadas), e uma
grande discussão sobre a segurança das casas noturnas em todo o País. O
episódio, que começou na madrugada de um domingo, mexeu com a rotina da casa
pois tirou Edu de casa, que teve que ir atrás de imagens da tragédia para um
cliente para o qual presta serviços de jornalismo. Ele não precisou se deslocar
até lá, e conseguiu intermediar as imagens, para uma agência internacional, via
telefone e internet. Mas até ele cruzar a porta de casa eu ainda não conseguia
entender como um incêndio no interior do Brasil estava chamando tanta atenção
da imprensa internacional. À medida que as informações foram chegando, é que
fui me dando conta da gravidade da situação.
Eu me lembro que última vez que fiquei
transtornada com uma tragédia desse porte, foi no acidente da Air France, em
2008, que o avião caiu no meio do mar. Lembro de olhar para as pessoas na rua e
me dar conta da fragilidade dos seus corpos, da possibilidade de algo terrível
acontecer com eles, assim, de repente. Mas dessa vez foi diferente. Porque
dessa vez eu sou mãe. De um bebê, sim, mas acontece que bebês crescem, se
tornam crianças, adolescentes, jovens. E saem pra baladas, como essas e como
outras, como muitas que eu já fui e nunca sequer me passou pela cabeça imaginar
que poderia estar correndo algum risco de vida.
Quando eu li no letreiro da TV, por volta
de 10h da manhã, que 180 mortes já haviam sido confirmadas, só fiquei pensando
nas mães daqueles mortos. Pensando que elas estavam em casa no sábado à noite, interagindo
com filhos e filhas enquanto esses se preparavam para sair e passar a madrugada
fora de casa, para onde provavelmente retornariam somente quando o sol já
tivesse dado as caras. Só que não. Eles não chegaram. E não deram notícias. E
elas provavelmente devem ter ligado para os celulares das crias, que foram
ouvidos apenas pelos bombeiros e os sobreviventes. E fiquei pensando como seria
a próxima ligação que elas receberiam, solicitando que comparecessem para fazer
um reconhecimento.
Como lidar com um sentimento desses? Sempre
ouvi que filhos não devem morrer antes dos pais, é contra a natureza das
coisas. Parece lugar comum, mas é cruel demais. Depois que Luca nasceu, estaria
mentindo se não me preocupei que algo fatal pudesse acontecer a ele, claro que
pensei. E temi, como temo diversas vezes, que um medo sem razão aparente se
abate sobre mim. Um medo de nunca mais vê-lo, de não poder abraça-lo, vê-lo
descobrir o mundo, sentir seu cheirinho de neném que eu gostaria que ficasse
nele pra sempre.
E concluo, como concluí pouquíssimo tempo
após seu nascimento, que da morte de um filho a gente nunca se recupera. E,
mais que isso, quando uma mãe fica órfã de seu filho, é como se todas nós,
mães, ficássemos um pouco órfãs também. É uma perda irreparável, a potência que
não se transformou em ato, como orientava o filósofo, há muito tempo atrás.
Mas, do alto do meu lugar de mãe de um guri
com quase 2 anos, que começa, dentro dos seus limites, a reivindicar sua
própria autonomia, à medida que adquire consciência de que é um sujeito nele
mesmo, como lidar com o fato de que, sim, bebês crescem, e tendem a buscar cada
vez mais o mundo, longe da gente? É uma questão difícil, e que uma tragédia
como essa traz à tona da forma mais cruel possível: não, ninguém está livre de
ser uma vítima fatal num evento trágico como esse.
Luca irá crescer, irá amadurecer, e vai
começar a buscar seu lugar no mundo de forma cada vez mais consciente e ativa.
E isso significa que eu, mãe dele, não poderei mais protege-lo das quedas, como
faço hoje em dia, que ele ainda não se equilibra direito sobre as próprias
pernas. Significa aceitar que crescer implica sim, em algum nível de
sofrimento, porque o sofrimento também nos ensina muitas coisas, como ensinaram
a mim, e a meus pais também. Crescer, também, implica em assumir
responsabilidades pelas próprias escolhas e às vezes a gente se equivoca nas
escolhas.
Talvez eu esteja chovendo no molhado por
dizer tudo isso, mas acho que o post é um desabafo, uma necessidade interna de
me conformar que não, não tem mais volta. Coloquei um ser humano nesse mundo, e
ele terá o direito de viver como desejar, correndo os riscos que isso implicar.
E como negar-lhe esse direito? Como querer que ele viva enrolado no plástico
bolha? Sim, coisas ruins, ou muito ruins, podem acontecer, como aconteceu com
esses jovens, que perderam a vida, e com suas mães, que perderam seu legado,
seu futuro. Mas viver é sempre um risco. Olhando pra trás, com meu olhar de
mãe, perco a conta de quantas as situações em que estive envolvida e
representavam um tremendo risco e eu, paradoxalmente, me sentia segura.
Então, se tem algo que essa tragédia me
ensinou, além de passar a conferir a existência de extintores de incêndio e
saídas de emergência em cada lugar fechado que eu adentrar a partir de agora, é
que preciso me conformar com o fato de que o meu controle sobre Luca é inversamente
proporcional à autonomia que ele começa a reivindicar. Poderei e irei orientar,
conversar, ser uma boa ouvinte, um pouso seguro. Segurar sua mão e coloca-lo no
meu colo para consola-lo. Velar seu choro e silenciar com ele. Torcer para que
as quedas não sejam irreversíveis, não seja irreparáveis. Mas infelizmente não
poderei, como desejo todas as vezes que ele adoece e chora com muita dor
madrugadas a fio, coloca-lo de volta na minha barriga a cada vez que algo ruim
lhe acontecer. O útero, o lugar mais seguro do mundo é, infelizmente, incompatível com estar
no mundo.