quarta-feira, 10 de abril de 2013

Separações que nunca têm fim




(Esse texto, pra variar, começou a ser escrito meses atrás, e só agora eu o retomo. A vida vai encaminhando a gente pra onde ela é mais premente, e nos cabe acompanhar... Nesse meio tempo voltamos de férias, começamos um trabalho novo, mudamos de casa, estamos vendo dentes nascer, mudando o tipo de fralda e até indo ao salão cortar o cabelo pela primeira vez. E com tantas novidades e acontecimentos cotidianos se passando, quando a pulsão de escrever e compartilhar retorna, a gente atende, pois sabe que é a hora...)

Ultimamente, de forma mais ou menos contínua, eu tenho percebido em mim uma necessidade intensa de estar perto de Luca. Tenho ímpetos de parar tudo que estou fazendo e ir busca-lo na creche. Impulso de ir dormir no quarto dele à noite. Uma vontade de sentir seu cheiro, estar perto da sua pele, grudados e inseparáveis, como fomos um dia.
 
Tudo começou no final do ano passado, quando iniciei um processo de questionamento interno das escolhas após o fim da licença maternidade, da minha vida profissional versus as necessidade de Luca, da nossa vida financeira se apenas o Edu fosse o responsável pelo sustento da casa, e eu arcasse com a tarefa do cuidado da casa – e das pessoas que a habitam. Isso porque Luca passou uma fase difícil na creche, não queria ficar lá de jeito nenhum, nenhum dia. Com nenhuma das educadoras, até a que ele mais adora. Pra mim foi torturante ter que deixa-lo em lágrimas ali naquele local, longe mim, dia sim e outro também. Por mais que ele se acalmasse rápido, às vezes até na minha presença, e depois seguisse bem o resto do dia, me odiava por fazer isso. E me sentindo muito mal por não ter como ficar com ele antes que as férias começassem, pois tinha um contrato de trabalho a honrar.

Mas felizmente logo vieram as férias, e curtimos à beça essa simbiose em tempo integral, vi meu bebê virar um papagaio tagarela, começar a formar frases, comer sozinho e crescer, crescer e crescer. Luca teve seu primeiro Natal, que nunca nem fiz muita questão, mas vibrei ao vê-lo seguir com a gente noite adentro na janta familiar que fizemos por aqui, super companheiro. Justo ele que adora dormir antes de escurecer e acordar antes de clarear... rsrsrs... No ano novo a coisa quase se repetiu, mas quando sentimos que ele estava pelas tabelas, viemos pra casa, e celebramos a chegada de 2013 a dois, com ele dormindo placidamente.

Também nas férias, decidimos desmontar o berço e abrir para Luca novas possibilidades para a hora de dormir, com mais autonomia para ir e vir da sua cama e de seu quarto. Não foi simples, o guri se mexe demais, e não foram poucas as vezes que fomos resgatá-lo obstruindo a porta ou deitado no meio do chão frio, chapado, dormindo profundamente e sem acordar ao ser “guinchado”... Passamos mais uma temporada na casa dos meus pais, que também curtiram demais as novidades que essas visitas sempre levam pra vida cotidiana deles – e pra de Luca também. Vimos amigos, amigas, filhos de amigos, e eu sempre percebendo em Luca o grude, a necessidade constante de não se separar de mim por nenhum momento.

E à medida que foi se aproximando o dia de voltar pra creche,  fui eu pensando como ia ser, se ele ia chorar, se ele ia querer ficar. E construindo cenários imaginários na minha cabeça para o caso de ele não querer, de ser sofrido demais. Fui preparando mininu pra esse novo começo também, falando pra ele que ele ia voltar pra creche, que a mamãe ia voltar a trabalhar. E Luca fala: “não”. Putz. Lá vou eu explicar pra ele, da forma mais simples possível, que era preciso, e que ele ia ficar bem.

Apesar de toda receptividade da creche para a minha preocupação, eu sabia, dentro de mim, que não se tratava do atendimento que ele recebe lá. Trata-se da nossa relação de mãe e filho, desse binômio HeloizaLuca que cada dia que passa começa a dar espaço à mãe e ao filho como indivíduos emocionalmente integrais. Luca está às portas de completar 2 anos, e tem dias que eu queria que ele fosse um bebezinho que só dormisse no peito, como foi por tanto tempo. Que ele fosse leve o bastante para que eu ficasse horas com ele no colo sem sentir dor na coluna. E que ele quisesse ficar horas no colo, pois hoje em dia seus interesses são outros.

Luca nasceu descobrindo o mundo com a boca, depois passou para os olhos, as mãos, agora os pés. Quer ter autonomia, ir e vir, brincar de uma coisa e depois de outra. Já sabe comer sozinho e beber água no copo comum. Não dorme sem a mamadeira, mas adormece sozinho. Afirma diariamente seus desejos e suas preferencias. Sabe dizer não, e justamente hoje, indagou seu primeiro “por que?”. Está aprendendo a falar em primeira pessoa, falar “isso é meu”. E também sinaliza quando a fralda está suja, sem confundir uma coisa com a outra. Meu bebê está virando uma criança, bem devagar, bem aos poucos, mas está. Ele ainda depende de mim pra coisas como tomar banho, se vestir, e entrou numa fase de pesadelos, de ter medo de barulhos repentinos (isso ele sempre teve, na  verdade).

E aí meu eu se divide em dois, de um lado eu me emociono quando me dou conta desse amadurecimento, do desenvolvimento dele nesse processo de se descobrir no mundo. Mesmo sabendo que nosso vínculo estará sempre aí, e irá se atualizar e se transformar à medida que o tempo for passando, bate a melancolia, a sensação de que cada dia mais ele será menos meu e mais do mundo, mais para o mundo.

E aí dá aquela vontade maluca de sacar um cordão umbilical e amarra-lo junto a mim novamente.

O sentimento é tão instintivo como era o ato de levantar de madrugada para atende-lo, ou para acudir o pai quando esse não conseguia acalmar o guri. Estar junto é uma necessidade, daquelas vitais, tipo respirar. Despertamos na mesma hora, quando vou coloca-lo pra dormir, adormeço também. Pois é, acho que estou sofrendo de ansiedade de separação às avessas...


Mas num sentido positivo, ao reconhecer que se trata de um processo de separação mesmo, e que traz ansiedade. De reconhecer que a fase dele de sair da simbiose está chegando, e ele se interessa muito pelas coisas do mundo, a ponto de aceitar se separar de mim, ou até de não querer meu grude (tipo a mãe louca querendo dar ataque de beijo no filho que está entretido com uma brincadeira e ouve: “num qué ataki de bêdô”).

E que isso significa que a minha fase de sair da simbiose também está chegando. Que sim, ainda vamos precisar muito um do outro, para muitas coisas, porém cada dia que passa caminhamos para existir mais como sujeitos (eu pela segunda, ou terceira vez, se contar os meus 2 anos) e não como binômio. E isso, longe de afetar nossa parceria, só vai fortalecer, dentro de um processo que começou no dia em que ele saiu de dentro de mim. Cada dia maior, mas sempre com espaço garantido nesse colo de mãe que nunca terá fim.




quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Sobre perdas irreparáveis


O incêndio  na boate de Santa Maria/RS promoveu uma comoção nacional em torno das vítimas, 235 até a data de hoje (já que muitas permanecem internadas), e uma grande discussão sobre a segurança das casas noturnas em todo o País. O episódio, que começou na madrugada de um domingo, mexeu com a rotina da casa pois tirou Edu de casa, que teve que ir atrás de imagens da tragédia para um cliente para o qual presta serviços de jornalismo. Ele não precisou se deslocar até lá, e conseguiu intermediar as imagens, para uma agência internacional, via telefone e internet. Mas até ele cruzar a porta de casa eu ainda não conseguia entender como um incêndio no interior do Brasil estava chamando tanta atenção da imprensa internacional. À medida que as informações foram chegando, é que fui me dando conta da gravidade da situação.

Eu me lembro que última vez que fiquei transtornada com uma tragédia desse porte, foi no acidente da Air France, em 2008, que o avião caiu no meio do mar. Lembro de olhar para as pessoas na rua e me dar conta da fragilidade dos seus corpos, da possibilidade de algo terrível acontecer com eles, assim, de repente. Mas dessa vez foi diferente. Porque dessa vez eu sou mãe. De um bebê, sim, mas acontece que bebês crescem, se tornam crianças, adolescentes, jovens. E saem pra baladas, como essas e como outras, como muitas que eu já fui e nunca sequer me passou pela cabeça imaginar que poderia estar correndo algum risco de vida.

Quando eu li no letreiro da TV, por volta de 10h da manhã, que 180 mortes já haviam sido confirmadas, só fiquei pensando nas mães daqueles mortos. Pensando que elas estavam em casa no sábado à noite, interagindo com filhos e filhas enquanto esses se preparavam para sair e passar a madrugada fora de casa, para onde provavelmente retornariam somente quando o sol já tivesse dado as caras. Só que não. Eles não chegaram. E não deram notícias. E elas provavelmente devem ter ligado para os celulares das crias, que foram ouvidos apenas pelos bombeiros e os sobreviventes. E fiquei pensando como seria a próxima ligação que elas receberiam, solicitando que comparecessem para fazer um reconhecimento.

Como lidar com um sentimento desses? Sempre ouvi que filhos não devem morrer antes dos pais, é contra a natureza das coisas. Parece lugar comum, mas é cruel demais. Depois que Luca nasceu, estaria mentindo se não me preocupei que algo fatal pudesse acontecer a ele, claro que pensei. E temi, como temo diversas vezes, que um medo sem razão aparente se abate sobre mim. Um medo de nunca mais vê-lo, de não poder abraça-lo, vê-lo descobrir o mundo, sentir seu cheirinho de neném que eu gostaria que ficasse nele pra sempre.

E concluo, como concluí pouquíssimo tempo após seu nascimento, que da morte de um filho a gente nunca se recupera. E, mais que isso, quando uma mãe fica órfã de seu filho, é como se todas nós, mães, ficássemos um pouco órfãs também. É uma perda irreparável, a potência que não se transformou em ato, como orientava o filósofo, há muito tempo atrás.

Mas, do alto do meu lugar de mãe de um guri com quase 2 anos, que começa, dentro dos seus limites, a reivindicar sua própria autonomia, à medida que adquire consciência de que é um sujeito nele mesmo, como lidar com o fato de que, sim, bebês crescem, e tendem a buscar cada vez mais o mundo, longe da gente? É uma questão difícil, e que uma tragédia como essa traz à tona da forma mais cruel possível: não, ninguém está livre de ser uma vítima fatal num evento trágico como esse.

Luca irá crescer, irá amadurecer, e vai começar a buscar seu lugar no mundo de forma cada vez mais consciente e ativa. E isso significa que eu, mãe dele, não poderei mais protege-lo das quedas, como faço hoje em dia, que ele ainda não se equilibra direito sobre as próprias pernas. Significa aceitar que crescer implica sim, em algum nível de sofrimento, porque o sofrimento também nos ensina muitas coisas, como ensinaram a mim, e a meus pais também. Crescer, também, implica em assumir responsabilidades pelas próprias escolhas e às vezes a gente se equivoca nas escolhas.

Talvez eu esteja chovendo no molhado por dizer tudo isso, mas acho que o post é um desabafo, uma necessidade interna de me conformar que não, não tem mais volta. Coloquei um ser humano nesse mundo, e ele terá o direito de viver como desejar, correndo os riscos que isso implicar. E como negar-lhe esse direito? Como querer que ele viva enrolado no plástico bolha? Sim, coisas ruins, ou muito ruins, podem acontecer, como aconteceu com esses jovens, que perderam a vida, e com suas mães, que perderam seu legado, seu futuro. Mas viver é sempre um risco. Olhando pra trás, com meu olhar de mãe, perco a conta de quantas as situações em que estive envolvida e representavam um tremendo risco e eu, paradoxalmente, me sentia segura.

Então, se tem algo que essa tragédia me ensinou, além de passar a conferir a existência de extintores de incêndio e saídas de emergência em cada lugar fechado que eu adentrar a partir de agora, é que preciso me conformar com o fato de que o meu controle sobre Luca é inversamente proporcional à autonomia que ele começa a reivindicar. Poderei e irei orientar, conversar, ser uma boa ouvinte, um pouso seguro. Segurar sua mão e coloca-lo no meu colo para consola-lo. Velar seu choro e silenciar com ele. Torcer para que as quedas não sejam irreversíveis, não seja irreparáveis. Mas infelizmente não poderei, como desejo todas as vezes que ele adoece e chora com muita dor madrugadas a fio, coloca-lo de volta na minha barriga a cada vez que algo ruim lhe acontecer. O útero, o lugar mais seguro do mundo é, infelizmente, incompatível com estar no mundo.