terça-feira, 6 de novembro de 2012

Nós, as mulheres


Com a nova vida de home office eu pensei que teria um pouco mais de tempo para escrever sobre outras coisas... mas que nada, entre relatórios a serem elaborados, e uma maior dedicação com os assuntos domésticos (da casa atual e futura), e um pouco de procrastinação que me é peculiar, a verdade é que o dia tem sido tão curto quanto antes. Quando não é, eu aproveito pra ir buscar meu gordinho mais cedo na creche. E às vezes me bate até uma dúvida se ele não preferia ficar lá mais um tempinho, dados os eventuais protestos...

Por outro lado, pululam ideias dentro de mim para diversos posts aqui nesse mural. Para além de relatar as conquistas diárias de Luca, que segue rumo aos 18 meses muito bem vividos e desenvolvidos, há também muitas reflexões que venho carregando nos últimos tempos. De doenças a viagens, da ansiedade da separação aos mitos da maternidade. Difícil escolher um só, mas necessário.

Esses dias, participando de um grupo de discussões eletrônico formado por mulheres que buscaram o parto domiciliar como alternativa de nascimento para seus filhos, surgiu o assunto do direito de expressarmos nossos sentimentos em relação ao parto, dissociando-o da experiência de nascimento de um filho.

Mas é possível fazer isso? Separar o parto do nascimento?

E eu respondo: não apenas totalmente possível, como absolutamente necessário. E, infelizmente, altamente desvalorizado pela nossa sociedade patriarcalista.

Quem acompanha meus posts no facebook sabe que eu não perco a oportunidade de expressar minha indignação acerca do tratamento dispensado a nós, mulheres, quando nos encontramos naquele famoso “estado interessante”. Na verdade, o interesse se dá pura e simplesmente pela nossa barriga avantajada e projetada para frente, que desloca nosso eixo de gravidade e nossa coluna também... eu sempre detestei a ideia da minha barriga ser um patrimônio público, ou no jargão popular, um corrimão. E de tanto que não escondi isso, as pessoas faziam até uma cerimônia antes de meter a mão em mim. Autodeterminação na veia.

Bem, mas acontece que não é só isso que fica meio deslocado nesse período – e por muito tempo depois -, mas também nossas ideias, nossos desejos, nossas projeções e nossas inseguranças. Porém nada disso é permitido de ser vivido na plenitude e intensidade com que acontecem dentro da gente, porque o que importa “é que tem um bebezinho lindo chegando aí, que só vai te trazer alegrias etc. etc. etc.”. Antes fosse isso. Só alegrias. Traz também cansaço, irritação, impaciência, dúvidas. Sentimentos que também somos obrigadas a varrer pra debaixo do tapete nas rodinhas do parque, da creche e das festas infantis. Senão ainda corremos o risco de prejudicar a sociabilidade da nossa própria cria, por nos afastarmos do padrão. E isso é outro mito que esses dias li algo muito bom a respeito, e qualquer dia eu também vou me aventurar a escrever.

Enfim, quando eu estava grávida, especialmente entre o segundo e terceiro trimestre de gestação, comecei a me deparar com essa realidade. De forma mais direta, me disseram um dia, na chegada a uma festa, que eu me acostumasse a ser chamada de mãe, não mais de Heloiza. E que dali em diante ninguém mais ia querer saber de mim, só de Luca. Legal ouvir isso com os hormônios em ebulição, né? Fiquei tocada com a sensibilidade da pessoa. E, internamente, ri da tosquice que acabara de ouvir.

Mas não tinha nada de tosco naquela fala. Era a mais pura verdade.

Todo lugar que eu chego com Luca, por mais que eu saiba o quanto as pessoas me querem bem (algumas vezes nem tanto), ele sempre é cumprimentado primeiro. Às vezes eu sequer sou saudada. Sei que ninguém faz isso para me agredir, às vezes até o Edu se passa nisso, meu pai, minha mãe, enfim. E eu seria uma tola de achar que a coisa é pessoal. Não é. O condicionamento é social. Mas pouco importa. Esse post não se trata de bebês, mas de mulheres grávidas que se tornam mães.

A sociedade patriarcal e de consumo não vê a mulher grávida como um sujeito em profundo processo de transformação física e psíquica. Além de vê-la como consumidora de artigos caros e na maior parte desnecessários, não lhe dá espaço para vivenciar o luto de partos que não saíram como o esperado, como por exemplo uma transferência para um hospital após tentativa de parto domiciliar, ou uma cesárea, bem indicada ou não, após meses de preparação para um parto vaginal. Diante daquela nova vida, não importa o que aconteceu no parto. A mulher deve ser grata por aquele pequeno milagre que reina em seu colo a partir de então. Alias, é melhor nem entrar nos detalhes do processo, pois os detalhes só enxergam a sujeira: a placenta, o sangue, o mecônio, o vernix. A sujeira do corpo da mulher. Inclusive muitas afirmam que acham a cesárea mais limpinha. Sim, esse é o termo: limpinha.

Durante minha gravidez inteira, por todos os motivos expostos acima, nunca admiti publicamente que tinha horror à ideia de uma cicatriz na minha barriga e, após a vivencia transcendental do parto domiciliar, passei também a ter horror à possibilidade de parir num hospital. Mas eu me contive publicamente com relação aos meus medos, pois não queria ouvir nenhuma idiotice do tipo “o que importa é seu filho vir com saúde”, tampouco dar margem para aquelas histórias de terror de cordões umbilicais assassinos e mulheres inaptas a parir. Meu corpo, minhas escolhas. Mil vezes a sujeirada que Luca fez na casa na hora que saiu, que segundo o Edu ficou parecendo cenário de chacina, e  vir direto pro meu peito, que a assepsia, os bisturis e a falta de humanidade dos hospitais. Autodeterminação na veia, parte 2.

E pode parece meio agressivo, e talvez até seja, chamar de estúpidas as pessoas que insistem nessa falácia da realização feminina centrar-se na maternidade. Mas seria interessante que essas mesmas pessoas percebessem o quão agressivo e estúpido é a postura delas em anular a individualidade feminina, ou reduzi-la à experiência da maternidade, diante da grandiosidade que o evento gravidez-parto significa. 

A experiência do parto é algo tão profundo, que cada uma das horas que eu vivi antes de ter Luca em meus braços estão sendo digeridas até hoje. Eu escrevi um relato de parto menos de um mês depois do seu nascimento, e escrevi outro um ano depois. E provavelmente escreverei muitos outros, porque as emoções vão e vem, se transformam, avançam e retrocedem. Porque até hoje eu ainda estou reconhecendo o meu corpo sem ser grávida, sem ser parida, sem ser lactante. Porque até hoje eu me questiono sobre minhas escolhas e porque até hoje eu revivo lembranças daquele 31 de maio que ficaram perdidas na partolândia. Porque partolândia e maternidade são lugares diferentes, que visitamos em momentos diferentes de nossas vidas, ainda que próximos e subsequentes. E isso não deveria ser questionado por ninguém.

Deveríamos ter direito a, no momento em que decidimos nos tornar mães, viver essa escolha como agentes ativos do processo, e não passivos. Uma amiga que pariu um pouco antes que eu chegou a me confessar, diante da pressão da família por fazer logo uma cesárea (sem que as 40 semanas tivessem chegado), que pensou em sucumbir, pois não aguentava mais ser tratada como uma mera hospedeira, uma pessoa sem vontade própria, que não era importante para ninguém, apenas quem ela carregava em seu ventre interessava.

Mas na verdade, de protagonistas desse tal “milagre da vida” que somos, porque é dentro da gente que os filhotes são gerados e se desenvolvem para encarar o mundo aqui fora, estamos relegadas a último plano; pouco importa se seremos cortadas por cima, por baixo, amarradas, sedadas, agredidas, violentadas. Importa mesmo é que tem um novo ser humano chegando aí, para ser introduzido nessa roda viva de horrores da independência precoce e dos consolos artificiais.

Tal como se trata a mulheres como objeto nesse momento da vida, ainda há um resquício de tratar crianças como macaquinhos, que estão ali para nos entreter com suas caras bochechudas e corpinhos ainda meio trôpegos. Já percebeu como tem gente que acha divertido ver uma criança chorando por algum motivo... de criança? Ou que ri de uma queda de um bebê que está aprendendo a se equilibrar? É quase um deleite em cima da vulnerabilidade e da imaturidade (no sentido de um desenvolvimento que ainda está incompleto) desses seres humanos com tão pouca experiência e tempo de vida... eu acho isso perverso. Mas é como nossa sociedade, mais uma vez, trata os que considera vulneráveis. 

Sim, penso nisso tudo como reflexo da sociedade patriarcal que vivemos, que o poder político, cultural e econômico ainda é majoritariamente masculino, que atropela tudo aquilo que considera mais fraco (as crianças, como falei acima), ou ameaçador. Dentro desse espectro, é uma afronta que justo o poder de dar à luz esteja em mãos femininas. É preciso se apropriar desse corpo, deixá-lo na posição mais vulnerável possível para depois colher os louros de trazer à luz novas vidas, "com segurança". Podem me achar conspiratória, mas não consigo enxergar o mundo senão por uma perspectiva sistêmica, em que tudo está encadeado, concatenado, com pouco lugar para o acaso, especialmente quando falamos em relações de dominação. E acredito, como Michel Odent, que “para mudar o mundo, é preciso, primeiro, mudar a forma de nascer”, e sobre aquelas que são as verdadeiras responsáveis pelo nascer... nós, as mulheres.

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