Com a nova vida de home office eu
pensei que teria um pouco mais de tempo para escrever sobre outras coisas...
mas que nada, entre relatórios a serem elaborados, e uma maior dedicação com os
assuntos domésticos (da casa atual e futura), e um pouco de procrastinação que
me é peculiar, a verdade é que o dia tem sido tão curto quanto antes. Quando
não é, eu aproveito pra ir buscar meu gordinho mais cedo na creche. E às vezes
me bate até uma dúvida se ele não preferia ficar lá mais um tempinho, dados os
eventuais protestos...
Por outro lado, pululam ideias
dentro de mim para diversos posts aqui nesse mural. Para além de relatar as
conquistas diárias de Luca, que segue rumo aos 18 meses muito bem vividos e
desenvolvidos, há também muitas reflexões que venho carregando nos últimos
tempos. De doenças a viagens, da ansiedade da separação aos mitos da
maternidade. Difícil escolher um só, mas necessário.
Esses dias, participando de um
grupo de discussões eletrônico formado por mulheres que buscaram o parto
domiciliar como alternativa de nascimento para seus filhos, surgiu o assunto do
direito de expressarmos nossos sentimentos em relação ao parto, dissociando-o
da experiência de nascimento de um filho.
Mas é possível fazer isso?
Separar o parto do nascimento?
E eu respondo: não apenas
totalmente possível, como absolutamente necessário. E, infelizmente, altamente
desvalorizado pela nossa sociedade patriarcalista.
Quem acompanha meus posts no
facebook sabe que eu não perco a oportunidade de expressar minha indignação acerca
do tratamento dispensado a nós, mulheres, quando nos encontramos naquele famoso
“estado interessante”. Na verdade, o interesse se dá pura e simplesmente pela
nossa barriga avantajada e projetada para frente, que desloca nosso eixo de
gravidade e nossa coluna também... eu sempre detestei a ideia da minha barriga
ser um patrimônio público, ou no jargão popular, um corrimão. E de tanto que
não escondi isso, as pessoas faziam até uma cerimônia antes de meter a mão em
mim. Autodeterminação na veia.
Bem, mas acontece que não é só
isso que fica meio deslocado nesse período – e por muito tempo depois -, mas também
nossas ideias, nossos desejos, nossas projeções e nossas inseguranças. Porém
nada disso é permitido de ser vivido na plenitude e intensidade com que
acontecem dentro da gente, porque o que importa “é que tem um bebezinho lindo
chegando aí, que só vai te trazer alegrias etc. etc. etc.”. Antes fosse isso. Só alegrias. Traz também cansaço, irritação, impaciência, dúvidas. Sentimentos
que também somos obrigadas a varrer pra debaixo do tapete nas rodinhas do
parque, da creche e das festas infantis. Senão ainda corremos o risco de
prejudicar a sociabilidade da nossa própria cria, por nos afastarmos do padrão.
E isso é outro mito que esses dias li algo muito bom a respeito, e qualquer dia eu também vou me aventurar a escrever.
Enfim, quando eu estava grávida,
especialmente entre o segundo e terceiro trimestre de gestação, comecei a me
deparar com essa realidade. De forma mais direta, me disseram um dia, na
chegada a uma festa, que eu me acostumasse a ser chamada de mãe, não mais de
Heloiza. E que dali em diante ninguém mais ia querer saber de mim, só de Luca.
Legal ouvir isso com os hormônios em ebulição, né? Fiquei tocada com a
sensibilidade da pessoa. E, internamente, ri da tosquice que acabara de ouvir.
Mas não tinha nada de tosco naquela
fala. Era a mais pura verdade.
Todo lugar que eu chego com Luca,
por mais que eu saiba o quanto as pessoas me querem bem (algumas vezes nem
tanto), ele sempre é cumprimentado primeiro. Às vezes eu sequer sou saudada.
Sei que ninguém faz isso para me agredir, às vezes até o Edu se passa nisso, meu pai, minha mãe, enfim. E
eu seria uma tola de achar que a coisa é pessoal. Não é. O condicionamento é
social. Mas pouco importa. Esse post não se trata de
bebês, mas de mulheres grávidas que se tornam mães.
A sociedade patriarcal e de
consumo não vê a mulher grávida como um sujeito em profundo processo de
transformação física e psíquica. Além de vê-la como consumidora de artigos caros e na maior parte desnecessários, não lhe dá espaço para vivenciar o luto de partos que não
saíram como o esperado, como por exemplo uma transferência para um hospital
após tentativa de parto domiciliar, ou uma cesárea, bem indicada ou não, após
meses de preparação para um parto vaginal. Diante daquela nova vida, não importa
o que aconteceu no parto. A mulher deve ser grata por aquele pequeno milagre
que reina em seu colo a partir de então. Alias, é melhor nem entrar nos
detalhes do processo, pois os detalhes só enxergam a sujeira: a placenta, o sangue, o
mecônio, o vernix. A sujeira do corpo da mulher. Inclusive muitas afirmam que
acham a cesárea mais limpinha. Sim, esse é o termo: limpinha.
Durante minha gravidez inteira,
por todos os motivos expostos acima, nunca admiti publicamente que tinha horror
à ideia de uma cicatriz na minha barriga e, após a vivencia transcendental do
parto domiciliar, passei também a ter horror à possibilidade de parir num
hospital. Mas eu me contive publicamente com relação aos meus medos, pois não
queria ouvir nenhuma idiotice do tipo “o que importa é seu filho vir com saúde”,
tampouco dar margem para aquelas histórias de terror de cordões umbilicais
assassinos e mulheres inaptas a parir. Meu corpo, minhas escolhas. Mil vezes a
sujeirada que Luca fez na casa na hora que saiu, que segundo o Edu ficou
parecendo cenário de chacina, e vir
direto pro meu peito, que a assepsia, os bisturis e a falta de humanidade dos
hospitais. Autodeterminação na veia, parte 2.
E pode parece meio agressivo, e
talvez até seja, chamar de estúpidas as pessoas que insistem nessa falácia da realização
feminina centrar-se na maternidade. Mas seria interessante que essas mesmas
pessoas percebessem o quão agressivo e estúpido é a postura delas em anular a
individualidade feminina, ou reduzi-la à experiência da maternidade, diante da
grandiosidade que o evento gravidez-parto significa.
A experiência do parto é algo tão
profundo, que cada uma das horas que eu vivi antes de ter Luca em meus braços estão
sendo digeridas até hoje. Eu escrevi um relato de parto menos de um mês depois
do seu nascimento, e escrevi outro um ano depois. E provavelmente escreverei
muitos outros, porque as emoções vão e vem, se transformam, avançam e
retrocedem. Porque até hoje eu ainda estou reconhecendo o meu corpo
sem ser grávida, sem ser parida, sem ser lactante. Porque até hoje eu me
questiono sobre minhas escolhas e porque até hoje eu revivo lembranças daquele
31 de maio que ficaram perdidas na partolândia. Porque partolândia e
maternidade são lugares diferentes, que visitamos em momentos diferentes de nossas
vidas, ainda que próximos e subsequentes. E isso não deveria ser questionado por ninguém.
Deveríamos ter direito a, no
momento em que decidimos nos tornar mães, viver essa escolha como agentes
ativos do processo, e não passivos. Uma amiga que pariu um pouco antes que eu
chegou a me confessar, diante da pressão da família por fazer logo uma cesárea
(sem que as 40 semanas tivessem chegado), que pensou em sucumbir, pois não
aguentava mais ser tratada como uma mera hospedeira, uma pessoa sem vontade
própria, que não era importante para ninguém, apenas quem ela carregava em seu
ventre interessava.
Mas na verdade, de protagonistas desse tal “milagre da vida” que somos, porque é
dentro da gente que os filhotes são gerados e se desenvolvem para encarar o
mundo aqui fora, estamos relegadas a último plano; pouco importa se seremos
cortadas por cima, por baixo, amarradas, sedadas, agredidas, violentadas.
Importa mesmo é que tem um novo ser humano chegando aí, para ser introduzido
nessa roda viva de horrores da independência precoce e dos consolos
artificiais.
Tal como se trata a mulheres como objeto nesse momento da vida, ainda há um resquício de tratar crianças como
macaquinhos, que estão ali para nos entreter com suas caras bochechudas e
corpinhos ainda meio trôpegos. Já percebeu como tem gente que acha divertido
ver uma criança chorando por algum motivo... de criança? Ou que ri de uma queda
de um bebê que está aprendendo a se equilibrar? É quase um deleite em cima da
vulnerabilidade e da imaturidade (no sentido de um desenvolvimento que ainda
está incompleto) desses seres humanos com tão pouca experiência e tempo de
vida... eu acho isso perverso. Mas é como nossa sociedade, mais uma vez, trata
os que considera vulneráveis.
Sim, penso nisso tudo como reflexo da sociedade patriarcal que
vivemos, que o poder político, cultural e econômico ainda é majoritariamente
masculino, que atropela tudo aquilo que considera mais fraco (as crianças, como
falei acima), ou ameaçador. Dentro desse espectro, é uma afronta que justo o
poder de dar à luz esteja em mãos femininas. É preciso se apropriar desse
corpo, deixá-lo na posição mais vulnerável possível para depois colher os
louros de trazer à luz novas vidas, "com segurança". Podem me achar
conspiratória, mas não consigo enxergar o mundo senão por uma
perspectiva sistêmica, em que tudo está encadeado, concatenado, com pouco lugar
para o acaso, especialmente quando falamos em relações de dominação. E
acredito, como Michel Odent, que “para mudar o mundo, é preciso, primeiro,
mudar a forma de nascer”, e sobre aquelas que são as verdadeiras responsáveis
pelo nascer... nós, as mulheres.
Maravilhoso o texto!
ResponderExcluirAbraços,
Gabryelle Patriota
Arrasou, Helô!
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